as cidades e os mortos




Em Melania, a cada vez que se entra na praça, se encontra meio a um diálogo; o soldado fanfarrão e o aproveitador saindo de uma porta se encontram com o jovem esbanjador e a prostituta; ou então o padre avarento do limiar faz as últimas recomendações à filha amorosa e é interrompido pelo servo abobado que vai levar um bilhete à alcoviteira. Se se retorna a Melania depois de anos e se reencontra o mesmo diálogo que continua; no meio tempo estão mortos o aproveitador, a alcoviteira, o padre avarento; mas o soldado fanfarrão, a filha amorosa, o servo abobado estão presos aos seus lugares, substituídos por sua vez pelo hipócrita, pela confidente, pelo astrólogo.
A população de Melania se renova: os que dialogam morreram um a um e no entanto nascem aqueles que tomarão o lugar deles por sua vez no diálogo, numa parte ou outra. Quando alguém mudava de lugar ou abandonava a praça para sempre ou fazia a primeira entrada, se produziam mudanças em cadeia, até que todas as partes não são distribuídas novamente, mas no entanto ao velho irado continua a responder a criada espirituosa, o usuário não deixa de perseguir o jovem deserdado, a ama-de-leite de consolar a enteada, até que nenhum deles conserve os olhos e a voz que havia na cena anterior.
Acontece em todas as vezes em que um só que dialoga sustenta ao mesmo tempo duas ou mais partes: tirano, benfeitor, mensageiro; ou que uma parte seja desdobrada, multiplicada, atribuída a cem, a mil habitantes de Melania: três mil para o hipócrita, trinta mil para o caloteiro, cem mil filhos de rei caídos em desgraça que esperam reconhecimento.
Com o passar do tempo até as partes não são mais exactamente as mesmas de início; certamente as acções que aqueles demandavam através das intrigas e golpes de cena carrega contra um qualquer desenlace final, que continua a aproximar-se até quando a meada parece embaraçar-se demais e os obstáculos aumentarem. Quem se mostra na praça em momentos sucessivos sente que de ato em ato o diálogo muda, ainda se as vidas dos habitantes de Melania são muito breves para se perceber.


Não existe cidade mais disposta a aproveitar a vida e a evitar aflições do que Eusápia. E, a fim de que o salto da vida para a morte seja menos brusco, os habitantes construíram no subsolo uma cópia idêntica da cidade. Os cadáveres, dessecados de modo que os esqueletos restem revestidos de pele amarela, são levados para baixo e continuam a cumprir antigas actividades. Destas, as preferidas são as que reproduzem momentos de despreocupação: a maioria é posicionada em torno de mesas servidas, ou colocada em posições de dança ou no gesto de tocar trombeta. Mas todos os comércios e profissões da Eusápia dos vivos são recriados no subsolo, ao menos os que os vivos realizaram com mais satisfação do que aborrecimento: o relojoeiro, no meio de todos os relógios parados de sua oficina, encosta a orelha seca num relógio de pêndulo sem corda; um barbeiro ensaboa com um pincel seco o osso dos zigomas de um actor enquanto este repassa o seu papel examinando o roteiro com as órbitas vazias; uma moça de crânio risonho ordenha uma carcaça de bezerra.
Claro que muitos dos vivos pedem para depois da morte um destino diferente do que lhes coube em vida: a necrópole é apinhada de caçadores de leões, meios-sopranos, banqueiros, violinistas, duquesas, concubinas, generais, em número maior do que jamais contou a cidade vivente.
A incumbência de acompanhar os mortos para baixo e instalá-los no lugar desejado é conferida a uma confraria de encapuzados. Ninguém mais tem acesso à Eusápia dos mortos e tudo o que se sabe de lá de baixo sabe-se por intermédio deles.
Dizem que a mesma confraria existe entre os mortos e que não deixa de lhes dar uma ajuda; após a morte, os encapuzados continuarão com o mesmo ofício também na outra Eusápia; fazem crer que alguns deles já morreram e continuam a ir de cima para baixo. Claro, a autoridade dessa congregação sobre a Eusápia dos vivos é muito ampla.
Dizem que cada vez que descem encontram alguma mudança na Eusápia de baixo; os mortos apresentam inovações em sua cidade; não muitas, mas certamente fruto de uma reflexão ponderada, não de caprichos passageiros. De um ano para o outro, dizem, não se reconhece a Eusápia dos mortos. E os vivos, para não ficarem para trás, querem fazer tudo o que os encapuzados contam a respeito das novidades dos mortos. Assim, a Eusápia dos vivos começou a copiar a sua cópia subterrânea.
Dizem que não é só agora que isso ocorre: na realidade, foram os mortos que construíram a Eusápia de cima semelhante à sua cidade. Dizem que nas duas cidades gémeas não existe meio de saber quem são os vivos e quem são os mortos.


O que torna Árgia diferente das outras cidades é que em vez de ar tem terra. As ruas estão completamente cobertas de terra, as salas cheias de argila até ao tecto, sobre as escadas assenta outra escada em negativo, por cima dos telhados das casas pairam camadas de terreno rochoso como céus com nuvens. Se os habitantes poderão andar pela cidade alargando os cunículos dos vermes e as fendas em que se insinuam as raízes, não o sabemos: a humidade quebra os corpos e deixa-lhes poucas forças; convém que fiquem quietos e deitados, de tão escura que é.
De Árgia, cá de cima, não se vê nada; há quem diga: "É lá em baixo" e só nos resta acreditar; os lugares são desertos. De noite, encostando o ouvido ao chão, às vezes ouve-se bater uma porta.


Laudômia, como todas as cidades, tem a seu lado uma outra cidade em que os habitantes possuem os mesmos nomes: é a Laudômia dos mortos, o cemitério. Mas a característica particular de Laudômia é a de ser, mais do que dupla, tripla; isto é, de compreender uma terceira Laudômia, que é a dos não-nascidos.
As prosperidades da cidade dupla são conhecidas. Quanto mais a Laudômia dos vivos se povoa e se dilata, mais aumenta a quantidade de tumbas do lado de fora da muralha. As ruas da Laudômia dos mortos são largas apenas o bastante para que transite o carro fúnebre, e são ladeadas por edifícios desprovidos de janelas; mas o traçado das ruas e a seqüência das moradias repetem os da Laudômia viva e, assim como nesta, as famílias são cada vez mais comprimidas em compactos nichos sobrepostos. Nas tardes ensolaradas, a população vivente visita os mortos e decifra os próprios nomes nas lajes de pedra: da mesma forma que a cidade dos vivos, esta comunica uma história de sofrimentos, irritações, ilusões, sentimentos; só que aqui tudo se tornou necessário, livre do acaso, arquivado, posto em ordem. E, para se sentir segura, a Laudômia viva precisa procurar na Laudômia dos mortos a explicação de si própria, não obstante o risco de encontrar explicações a mais ou a menos: explicações para mais de uma Laudômia, para cidades diferentes que poderiam ter existido mas não existiram, ou razões parciais, contraditórias, enganosas.
Muito justa, Laudômia confere um domicílio igualmente vasto àqueles que ainda vão nascer; claro que o espaço não é proporcional ao seu número, que se supõe infinito, mas, sendo um lugar vazio, circundado por uma arquitectura repleta de nichos e reentrâncias e cavidades, e podendo-se atribuir aos não-nascidos a dimensão que se deseja, imaginá-los do tamanho de um rato ou de um bicho-da-seda, ou de uma formiga, ou de um ovo de formiga, nada impede de visualizá-los erectos ou agachados em cada um dos suportes ou estantes que ressaem das paredes, em cada um dos capitéis ou plintos, em fila ou esparralhados, atentos às incumbências de suas vidas futuras, e de contemplar numa veia do mármore Laudômia inteira daqui a cem ou mil anos, apinhada de multidões vestidas de modo jamais visto, todos, por exemplo, com barreganas cor de berinjela, ou todos com plumas de peru nos turbantes, e de reconhecer os próprios descendentes e os das famílias aliadas ou inimigas, dos devedores e credores, que vão e vêm perpetuando os negócios, as vinganças, os matrimónios por amor ou por interesse. Os viventes de Laudômia freqüentam a casa dos não-nascidos, interrogando-os; os passos ressoam sob os tetos vazios; as questões são formuladas em silêncio: e é sempre deles próprios que perguntam os vivos, não daqueles que virão; alguns se preocupam em deixar uma ilustre memória de si, outros em encobrir as suas vergonhas; todos gostariam de seguir o fio das consequências dos próprios actos, mas, quanto mais aguçam o olhar, menos reconhecem um traço contínuo; os nascituros de Laudômia aparecem pontilhados como grãos de poeira, afastados do antes e do depois.
A Laudômia dos não-nascidos não transmite, como a dos mortos, qualquer segurança aos habitantes da Laudômia viva, só apreensão. Nos pensamentos dos visitantes, acabam por se abrir dois caminhos e não se sabe qual reserva maior angústia: ou se pensa que o número de nascituros supera grandemente o de todos os vivos e de todos os mortos, e, nesse caso, em cada poro de pedra acumulam-se multidões invisíveis, amontoadas nas encostas do funil como nas arquibancadas de um estádio, e, uma vez que a cada geração a descendência de Laudômia se multiplica, em cada funil se abrem centenas de funis, cada qual com milhões de pessoas que devem nascer e esticam os pescoços e abrem a boca para não sufocar; ou então se pensa que Laudômia também desaparecerá, não se sabe quando, e todos os seus habitantes desaparecerão com ela, isto é, as gerações se sucederão até uma certa cifra e desta não passarão, e por isso a Laudômia dos mortos e a dos não-nascidos são como as duas ampolas de uma ampulheta que não se vira, cada passagem entre o nascimento e a morte é um grão de areia que atravessa o estreitamento, e nascerá um último habitante de Laudômia, um último grão a cair que, no momento, está aguardando no alto da pilha.


As Cidades Invisíveis, Italo Calvino

A tradição consiste na atribuição do direito de voto à mais obscura de todas as classes, a classe dos nossos antepassados. A tradição é a democracia dos mortos.
A tradição recusa submeter-se à pequena e arrogante oligarquia daqueles que, por acaso, ainda circulam pelas ruas. Os democratas opõem-se à exclusão das pessoas devido aos acasos do nascimento; pois a tradição opõe-se à sua exclusão devido aos acasos da morte.
A democracia sugere-nos que não ignoremos a opinião de um homem bom, mesmo que seja o criado lá de casa; pois a tradição sugere-nos que não ignoremos a opinião de um homem bom, mesmo que seja nosso pai. (...)
Os mortos devem ter assento nos nossos conselhos. Na Grécia Antiga, votava-se por meio de pedrinhas; os nossos mortos votam por meio de pedras tumulares. É um processo perfeitamente razoável e oficial, dado que a maioria das pedras tumulares, tal como a maioria dos boletins de voto, é assinalada com uma cruz.


Ortodoxia, G. K. Chesterton



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adenda: The Cemetery Dream, Daniel Mendelsohn