MIGRAÇÃO

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O LIVRO DAS IGREJAS ABANDONADAS

Sujeito improvável, Emmanuel Carrère é, ele mesmo, o objecto desta demanda por Paulo através dos passos de Lucas (Actos e Evangelho).
A dúvida, ao naufragar com Paulo no Mar Egeu ou chegar a Roma, se Carrière fala do que foi ou de que gostaria que tivesse sido. Como se necessitasse de sustentar a sua conversão e desconversão ao cristianismo.
Bela aventura, no entanto. 



[O Reino | Emmanuel Carrère / Tinta-da-China, 2021]

 

O PÃO NOSSO DE CADA DIA





1.
As formas nascem da mão aberta.
Mas há uma que nasce da mão fechada,
da mais íntima concentração da mão,
da mão fechada que não é e não será um punho.
O homem corporifica à roda dela
como a última fibra da noite
ao engendrar a luz que coincide com a noite.
 
Talvez com essa forma seja possível
a conquista do zero,
a irradiação do ponto sem resto,
o mito do nada na palavra.

[Terceira Poesia Vertical | Poesia Vertical / Roberto Juarroz, trad. jac]

SERIA QUASE UMA HERESIA MUDAR ESTAS PEDRAS DE SÍTIO SEM A AUTORIZAÇÃO DO TEMPO O ARQUITECTO DO ACASO

[Moradia Unifamiliar | Av. Movimento das Forças Armadas / Sintra]



O que nos trazem estas casas antigas, o pastiche e o kitsch de uma vida [lifestyle] mignonne, sem sobressaltos nem sonhos maiores? E daí, ter um abrigo e uma pequena vida a ir-se cumprindo (no gerúndio) talvez seja já hoje uma utopia. 

Não se condene mais o ‘gosto’ do ‘vamos indo’ quando tudo à volta parece desabar em fealdade.

A LÂMINA CONTRA O CANSAÇO

 

[Metropolis | Fritz Lang / 1927]

“O trabalho é uma escola da razão; ao confrontar-nos com a realidade, protege-nos do delírio.” Como sempre, Simone Weil é luminosa. A sua obra inspira tanto cientistas sociais quanto o mundo da arte, como testemunha o recente concerto do Teatro Nacional de São Carlos, intitulado “La passion de Simone”. Vou neste artigo olhar para o futuro do trabalho, no contexto da transição digital, à luz da frase de Simone Weil já citada e desta outra: “O trabalho manual deve estar no centro da sociedade.” O pensamento ilumina, o pensamento como graça.

O desgraçado Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho
O futuro que queremos

O Livro Verde, atualmente em discussão em sede de concertação social, tem reflexões muito importantes; vale a pena lê-lo. Mas falta-lhe, a meu ver, uma visão do futuro que pode resultar de uma transição digital não devidamente regulada. É dito logo na segunda página que se pretende “preparar a sociedade para os desafios que decorrem das transformações a que temos vindo a assistir”. Presume-se então que essas transformações resultam de processos – mercados competitivos, decisões dos grandes grupos tecnológicos – que não podemos controlar e aos quais nos devemos adaptar? Ou podem e devem os governos nacionais e os órgãos da UE orientar as transições verde e digital?

Já se percebeu que a transição digital está a produzir um mundo do trabalho polarizado. Os trabalhadores mais instruídos ficam a teletrabalhar sentados em casa enquanto outros trabalhadores asseguram a logística, transportando comida e fornecendo bens e serviços comprados nas plataformas, tratando dos doentes e dos idosos, limpando as ruas e renovando os prédios. A novidade é que a ancestral divisão entre os que pensam/decidem e os que executam e servem é hoje acompanhada por uma separação do espaço físico. As tecnologias digitais permitem que uns trabalhem em isolamento social, distanciados fisicamente dos que trabalham com o corpo, sendo estes últimos os “trabalhadores essenciais” que mantiveram a sociedade a funcionar durante a pandemia. Esta redução das interações físicas, pessoais, em que o outro desaparece, pode acentuar a subvalorização do trabalho manual e relacional, característica escandalosa das nossas sociedades. Os estudos sobre polarização do emprego mostram como os salários destas profissões têm diminuído relativamente aos das profissões intelectuais. É aqui que entra a segunda frase de Simone Weil: o trabalho manual no centro da sociedade. Voltaremos a ela.

Os colossais programas de relançamento nos EUA e as medidas europeias de layoff e de manutenção do rendimento/poder de compra geraram resultados económicos que surpreendem todos os economistas; a aplicação a uma escala nunca antes vista da clássica receita keynesiana está a dar resultados inesperados. Um facto em particular merece atenção: em Portugal, o PIB em 2020 diminuiu 7,7%, enquanto as horas trabalhadas diminuíam cerca de 20%. Parece assim que não é necessário trabalhar tanto; a economia funciona à mesma com menos trabalho, basta que o Estado mantenha o poder de compra a níveis elevados. Os defensores do Rendimento Básico Universal podem argumentar que as suas previsões estão certas: o facto de haver pessoas a receber rendimento sem trabalhar aumenta a liberdade individual sem prejudicar a economia. Para além do problema que representa o endividamento público associado a estas medidas, coloca-se uma questão para mim mais fulcral: a de sabermos qual o lugar que queremos dar ao trabalho, na vida dos indivíduos e na organização da sociedade.

O trabalho protege-nos do delírio, diz Simone Weil. Porque nos obriga a confrontarmo-nos com a nossa condição de humanos. Ao trabalhar, temos de nos confrontar com a realidade, com a natureza, com os outros. Trabalhar significa sempre, independentemente da profissão e das funções, fornecer esforço e vencer obstáculos. É assim que cada um de nós obtém o seu sustento e satisfaz as suas necessidades. E a pandemia mostrou-nos que são os trabalhadores que trabalham com o corpo, que tratam das necessidades dos nossos corpos, que são os trabalhadores essenciais. São também eles que se confrontam com a realidade concreta e não apenas com o mundo das ideias. Por isso o trabalho manual é, para Simone Weil, de uma “qualidade superior”: ele protege-nos mais do delírio do que o trabalho que pode ser realizado em teletrabalho, sem contacto com o mundo físico.O futuro do trabalho é obviamente também o futuro da sociedade; por isso falei acima dos riscos de polarização social e cultural que podem resultar de um futuro do trabalho não controlado. Centrar a nossa reflexão sobre a importância do trabalho e, em particular, do trabalho manual, dar a todos a possibilidade de contribuírem para o bem comum com o seu trabalho, reconhecer e fornecer condições de vida e de trabalho dignas aos trabalhadores manuais; isso sim seria preparar um futuro socialmente sustentável e mais solidário.

Não quero aqui cair numa apologia delirante, irracional, do trabalho. Como advertiu Hannah Arendt, essa outra grande filósofa do trabalho, não devemos construir uma sociedade de trabalhadores-consumidores; é também preciso contemplar. Contemplar é uma necessidade vital da alma, diria Simone Weil. Mas é delirar pensar que se pode melhorar a sociedade sem melhorar o mundo do trabalho.


Proteger-se do delírio | Helena Lopes / Público,14.V.2021

A LÂMINA CONTRA O CANSAÇO



 Jorge Silva Melo e Luis Miguel Cintra: a revolução no teatro português | Ípsilon / 14.V.2021

SOME DREAMLY SMOKE CIGARETTES


 Martha Agerich / Buenos Aires, 1941

O PÃO NOSSO DE CADA DIA

 79.
A última voz do mundo
não assemelha a um limite,
mas sim um pedaço de teixo
lançado já sem o estorvo
de ter que acertar.
Animal magro
que se aquece ao sol de um novo hábito,
o de vaguear sem boca e sem ouvido,
medula apenas de voz,
som articulado que avançou demasiado.
Mas sem catástrofe nem luto:
simplesmente sem regresso.
Como um pensamento nocturno
que de improviso desliza
do espaço da noite
para a noite do pensamento.



[Segunda Poesia Vertical | Poesia Vertical / Roberto Juarroz, trad. jac]








O LIVRO DAS IGREJAS ABANDONADAS


Consummatum est,
e eu me consumo
acervo de unhas que me dilaceram
e eu estacado
perfil – homem de figura,
mas assombrado.

Consummatum est,
por nascer ainda
no meu pecado.

Consummatum est,
Minha voz grita
(acaso não grita)
a minha blasfémia.

Consummatum est
,
Cristo retirado,
eu posto na cruz.


[Consummatum est | Ruy Cinatti / Verbo - Deus Como Interrogação Na Poesia Portuguesa / Assírio & Alvim, 2014]

O PÃO NOSSO DE CADA DIA


 espera, espera, espera

O LIVRO DAS IGREJAS ABANDONADAS

Olho as ferramentas,
o mundo que os homens fazem, onde se afadigam,
suam, parem, coabitam.
O corpo dos homens, prensado pelos dias,
a sua noite de ronco e de esperneios
e as encruzilhadas em que se reconhecem.
Há cegueira e a fome ilumina-os
e a necessidade, mais dura que metais.
Sem orgulho (o que é o orgulho? Uma vértebra
que a espécie ainda não produz?)
os homens roubam, mentem,
como predadores farejam, devoram
e disputam a outro a carcaça.
E quando furtam, quando dissimulam
ou quando contornam uma lei ou quando
se aviltam, sorriem,
entreabrem ligeiramente as pálpebras, contemplam
o vazio que se abre nas suas entranhas
e entregam-se a um êxtase vegetal, inumano.
Eu sou de outra margem, de outro lado,
sou dos que não sabem nem tirar nem dar,
gente para quem partilhar é impossível.
Não te aproximes de mim, homem que fazes o mundo,
deixa-me, não é preciso que me mates.
Eu sou dos que morrem sós, dos que morrem
de algo pior que a vergonha.
Eu morro de olhar para ti e não perceber.



[Agonia Fora Do Muro / Poemas Escolhidos | Rosario Castellanos / Antígona - Editores Refractários, 2020]

MELHOR OU PIOR, TODA A GENTE DESPERDIÇA A SUA VIDA




Der Himmel über Abrunheira

O PÃO NOSSO DE CADA DIA


61.
Pensar rouba-nos o olhar.
Onde está então a visão,
os seus fios de música sem variações de som,
a sua coincidência de olho e sonho,
o seu espaço onde só o passar encontra espaço?
Onde está o pensamento que não rouba nada?
Embora menos do que outras,
pensar é também uma ausência.
E um esquecimento que cresce.
E permanecer sozinho
E abrir a porta para desaparecer.



[Segunda Poesia Vertical | Poesia Vertical / Roberto Juarroz, trad. jac]
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