Médio Ocidente


[Rio de Janeiro, 24.11.2010, Sérgio Moraes / Reuters]


Sabemos agora, depois do séc.XX, que as fronteiras não se abolem. E sabemos agora, no séc. XXI, que as fronteiras podem estar diluídas ou difusas ou ténues. Mas não cessam, apenas sofrem processos de reconfiguração e de re-desenho. Talvez a novidade da época de reconfiguração dos limites e fronteiras seja, por um lado, a percepção desse processo pelo indivíduo na sua vida quotidiana e, por outro, a consciência que essa reconfiguração assume uma escala global de causas e efeitos instantâneos e que todos os homens, em todos os lugares do mundo, são parte dessas transformações.
Se o gótico demorou cem ou duzentos anos a baixar a Portugal, por exemplo, ou as vanguardas modernistas necessitaram de trinta anos, duas guerras mundiais e muita propaganda, para se imporem como arquitectura e ideologia dominantes, o carácter dos acontecimentos destes dias será a instantaneidade. Futuro, passado, diluídos num aparente sempre presente.
A linearidade como ideia, optimista, de progresso histórico e emancipação humana cede è evidência que os acontecimentos de que hoje somos parte são efeitos de causas díspares no tempo e no espaço. Como uma evidência, na carne e no quotidiano, da teoria do caos ou da teoria das catástrofes. Se a matemática explica as condições de disseminação e propagação dos elementos a politica demonstra toda a impotência e incapacidade em entender a realidade (instável).
No século anterior manifestaram-se tragicamente os limites das ideologias que compreendiam a realidade como totalidades acabadas e o seu caminho foi uma procissão de morte; os escassos anos que nos distanciam da queda do muro de Berlim explicam-nos também a impossibilidade da compreensão do real à luz das teorias que pretendem emular a natureza como orientação social, aparentemente livre, e paradigma da condução (aparentemente sem regras) dos assuntos humanos. Há quem diga que Hegel morreu, que Adam Smith tenha sucumbido, mas ainda não há confirmações oficiais por parte da classe política. Esta ainda se mantém submissa a velharias ideológicas sem alcance nem horizonte para os dias que correm.

Justamente a política (europeia) que ainda não compreendeu o recuo do eurocentrismo e da mudança do centro económico global do Atlântico para o Pacífico, a política (dos BRIC’s) que, na especificidade de cada um deles, acede e deseja maior protagonismo num mercado global em que os símbolos dominantes são ainda e serão os (arcos dourados) produzidos pela indústria ideológica norte-americana (de matriz, evidentemente, europeia). Como uma conversa em linhas trocadas talvez a política não tenha ainda entendido que as fronteiras do velho mundo, realidades outrora acabadas, perderam eficácia e que é momento de entender os limites (do conhecimento), tentar explorá-los ou ultrapassá-los.
Em Lisboa, altos representantes políticos e militares reúnem-se para repensar a estratégia de intervenção global das instituições que representam. No Rio de Janeiro estala a guerra quando o estado, finalmente, pretende impor a lei e o estado de direito (formal, pelo menos, discutível, certamente), sobre territórios onde ela está ausente. Em Lisboa o velho mundo, atordoado, exibe-se no esplendor da sua fraqueza num acordo de escudo de protecção anti-míssil, sem que tal aparato militar tenha adesão às novas formas de guerra e terror. No Rio de Janeiro antecipa-se o futuro, Olímpicos e Copa, como possibilidade final da concretização da utopia da Cidade Maravilhosa e a “limpeza da cidade”, sustentada num discurso e linguagem bélicos, de uso corrente, e numa realidade de terror e pânico. Aparentemente diversos e distantes, são eventos como asas da mesma borboleta caótica.

A condição urbana global (não condição genérica), é a estrutura física onde estes acontecimentos ocorrem. E se no Rio de Janeiro o artefacto e o discurso militar são parte do quotidiano e da linguagem de uso quotidiano, na tentativa de aceder a modelos urbanos europeus e norte-americanos, vistos e pensados como os únicos possíveis, em Lisboa adquirem-se, com incompetência e estupidez habituais, artefactos militares para uma «guerra de bairros» inexistente e que apenas demonstra a falência e a ignorância dos políticos que dirigem a polis. A falência, porque mais um momento de depredação do dinheiro dos contribuintes sem qualquer carácter de serviço público e de aumento da liberdade, a ignorância, porque a recusa do poder político em pensar a condição urbana portuguesa à luz das características sociais, do vazio de qualquer política territorial e de cidades que foram os últimos 36 anos e apenas a importação de modelos de manutenção da paz, segurança e liberdade urbanas que nada têm a ver com a realidade portuguesa.
Curiosamente não houve conhecimento de que alguma voz, algum arquitecto ou urbanista, se tivesse pronunciado sobre tal monstruosidade.