breve história do lugar estético do arquitecto na cadeia de produção pós-industrial


Les Mercuriales, Bagnolet, Paris,  Serge Lana + Alfred H. Milh, 1975

- As andorinhas nunca usam os ninhos construídos pela mão do homem – disse Jed muito depressa – é impossível. E se um homem lhe tocou no ninho, até o abandonam e vão construir outro novo.
- Como é que sabes isso?
- Li isto há alguns anos num livro sobre o comportamento animal, estava a documentar-me para um quadro.
Era falso, nunca lera nada daquilo, mas o pai pareceu instantaneamente aliviado e logo se acalmou. Quem diria, pensou Jed, que ele andava há mais de sessenta anos com aquele peso no coração!... Peso que provavelmente o acompanhara ao longo de toda a sua carreira de arquitecto!...
- Depois do bac inscrevi-me nas Belas-Artes de Paris. O que inquietava um pouco a minha mãe, que preferia que eu fizesse um curso de engenharia; mas fui muito apoiado pelo teu avô. Penso que ele tinha uma ambição artística, como fotógrafo, mas nunca teve a possibilidade de fotografar mais que casamentos e primeiras comunhões…
Jed nunca vira o pai ocupado com outra coisa que não fossem problemas técnicos e, para o fim, a maioria das vezes, problemas financeiros; a ideia de que o pai também fizera Belas-Artes, de que a arquitectura fazia parte das disciplinas artísticas, era surpreendente, desconfortável.
- Sim, eu também queria ser um artista… - disse o pai com acrimónia, quase com maldade. – Mas não consegui. A corrente dominante quando eu era novo era o funcionalismo, a bem dizer dominava já desde há várias décadas, em arquitectura nada se tinha passado depois de Le Corbusier e de Van der Rohe. Todas as cidades novas, todas as cidades que se construíam nos subúrbios nos anos 50 e 60 foram marcadas pela sua influência. Eu e alguns outros nas Belas-Artes tínhamos a ambição de fazer coisa diferente. Não rejeitávamos propriamente o primado da função, nem a noção de «máquina de habitar»; mas o que púnhamos em questão era o que implicava o facto de se habitar em determinado lugar. Como os marxistas, como os liberais, Le Corbusier era um produtivista. O que ele imaginava para o homem eram edifícios de escritórios, quadrados utilitários, sem decoração de qualquer espécie; e edifícios de habitação mais ou menos idênticos, com algumas funções suplementares – jardim de infância, ginásio, piscina; e vias rápidas entre os dois. Na sua célula de habitação o homem devia beneficiar de ar puro e de luz, muito importante a seus olhos; e entre as estruturas de trabalho e as estruturas de habitação o espaço livre era reservado à natureza selvagem: florestas, rios – imagino que no espírito dele as famílias humanas deviam poder passear por lá aos domingos; de qualquer modo ele queria reservar esse espaço, era uma espécie de ecologista antecipado, para ele a Humanidade devia limitar-se a módulos de habitação circunscritos no meio da Natureza, mas sem em caso algum a modificarem. Quando pensamos nisto vemos que é pavorosamente primitivo, é uma regressão terrível relativamente a qualquer paisagem rural – mistura subtil, complexa, evolutiva, de prados, campos, florestas, aldeias. É a visão de um espírito brutal, totalitário. Le Corbusier parecia-nos um espírito totalitário e brutal, imbuído de um gosto intenso pela fealdade; mas foi a sua visão que prevaleceu ao longo de todo o século XX. Quanto a nós, éramos antes influenciados por Charles Fourrier… - Sorriu ao ver a expressão de surpresa do filho. – escolhemos sobretudo as teorias sexuais de Fourrier, e é certo que são bastante burlescas. É difícil ler o Fourrier imediato. Com as suas histórias de turbilhões, de faquires fêmeas e de fadas do exército do Reno, até nos espanta que tenha tido discípulos, gente que o levava a sério, que pretendia realmente construir um novo modelo de sociedade com base nos seus livros. É incompreensível se tentarmos ver nele um pensador, porque não se percebe absolutamente nada do seu pensamento, mas, no fundo, Fourrier não é um pensador, é um guru, o primeiro da sua espécie, e, como acontece com todos os gurus, o êxito veio-lhe, não da adesão intelectual a uma teoria, mas, pelo contrário, da incompreensão geral, associada a um inalterável optimismo, em especial no plano sexual. Porém, o verdadeiro tema de Fourrier, o que em primeiro lugar lhe interessa, não é o sexo, mas a organização da produção. A grande questão que se lhe põe é esta: porque é que o homem trabalha? Porque é que ele ocupa um determinado lugar na organização social, aceita lá estar e cumprir a sua tarefa? A esta questão os liberais respondiam que era pura e simplesmente o engodo do lucro; nós achávamos que era uma resposta insuficiente. Quanto aos marxistas, esses não respondiam a nada, nem sequer se interessavam pelo assunto, e aliás foi por isso que o comunismo fracassou: mal se suprimiu o aguilhão financeiro as pessoas deixaram de trabalhar, sabotaram a sua tarefa, o absentismo aumentou em proporções enormes; nunca o comunismo foi capaz de assegurar a produção e a distribuição dos bens mais elementares. Fourrier conhecera o Ancien Régime, e estava consciente de que muito antes do aparecimento do capitalismo haviam tido lugar pesquisas científicas, progressos técnicos, e que havia pessoas que trabalhavam duramente, por vezes muito duramente, sem serem impelidas pelo engodo do ganho mas por alguma coisa muito mais vaga aos olhos de um homem moderno: o amor a Deus, no caso dos monges, ou mais simplesmente a honra da função.
O pai de Jed calou-se, percebeu que o filho o escutava agora com muita atenção.
- Sim… - comentou ele -, existe sem dúvida uma relação com o que tu tentaste fazer nos teus quadros. há muitos galimatias em Fourrier, na sua totalidade quase ilegíveis; e talvez haja ainda, apesar de tudo, algo a retirar de lá. Enfim, era o que nós pensávamos naquela altura…
Calou-se, pareceu mergulhar de novo nas suas recordações. As borrascas tinham acalmado, dando lugar a uma noite estrelada, silenciosa; uma espessa camada de neve cobria os telhados.

- Eu era jovem… - disse ele por fim com uma espécie de incredulidade suavizada. – Tu talvez não possas dar por isso inteiramente, porque nasceste numa família que já era rica. Mas eu era jovem e preparava-me para me tornar arquitecto, e estava em Paris; tudo me parecia possível. E eu não era o único, Paris era alegre naquela altura, tinha-se a impressão de que se podia reconstruir o mundo. Foi então que conheci a tua mãe, estudava no Conservatório, tocava violino. Éramos na verdade uma espécie de bando de artistas. Enfim, não fomos além de escrever quatro ou cinco artigos numa revista de arquitectura, com várias assinaturas. Em grande parte eram textos políticos. Neles defendíamos a ideia de que uma sociedade complexa, ramificada, com níveis de organização múltiplos, como a que Fourrier propunha, exige uma arquitectura complexa, ramificada, múltipla, com margem para a criatividade individual. Atacávamos violentamente Van der Rohe – que fornecia estruturas vazias, moduláveis, as mesmas que serviam de modelo aos open space das empresas – e sobretudo Le Corbusier, que construía incansavelmente espaços concentracionários, divididos em células idênticas, boas exactamente, dizíamos, para uma prisão modelo. Esses artigos tiveram uma certa repercussão, acho que Deleuze falou deles; mas eu tinha que trabalhar, e ou outros também; entrámos em grandes gabinetes de arquitectos, e a vida tornou-se de repente muito menos divertida. A minha situação financeira bem depressa melhorou, nessa época havia muito trabalho, a França estava a reconstruir-se a grande velocidade. Comprei a casa do Raincy, achei boa ideia, naquele tempo era uma cidade agradável. E além disso consegui-a por um óptimo preço, foi um cliente que me proporcionou o negócio, um promotor imobiliário. O proprietário era um velhote, visivelmente um intelectual, sempre de fato cinzento de três peças e de flor na botoeira, uma flor diferente de cada vez que o via. Parecia ter saído da Belle Époque, quando muito dos anos 30, não conseguia associá-lo ao que o rodeava. Poderíamos imaginar encontrá-lo, sei lá, no quai Voltaire… enfim, no Raincy de certeza que não. Era um antigo universitário, especializado em esoterismo e História das Religiões, lembro-me de que sabia muito da Cabala e da gnose, mas interessava-se por essas coisas de um modo muito especial, por exemplo, por René Guénon só tinha desprezo. «Aquele imbecil do Guénon», era assim que ele dizia, acho que tinha escrito várias críticas virulentas aos livros dele. Nunca fora casado, enfim, tinha vivido para os seus trabalhos, como se costuma dizer. Li um longo artigo escrito por ele numa revista de ciências humanas onde desenvolvia umas considerações bastante curiosas sobre o Destino, sobre a possibilidade de desenvolver uma nova religião baseada no princípio da sincronicidade. Só a biblioteca valia o preço da casa, acho eu – tinha mais de cinco mil volumes, em francês, em inglês e em alemão. Foi lá que descobri as obras de William Morris.
Deteve-se a notar uma mudança de expressão na cara de Jed.
- Conheces William Morris?
- Não, papá. Mas eu também vivi naquela casa, e lembro-me da biblioteca… - Suspirou, hesitou. – Não percebo porque é que esperaste tantos anos para me falares de tudo isso.
- É porque vou morrer em breve, penso eu – disse simplesmente o pai. – Enfim, não já, não depois de amanhã, mas não estou cá muito tempo, é uma evidência… - Olhou em volta e sorriu quase jovialmente.
- Podes servir-me mais conhaque?
Jed tornou a servi-lo imediatamente. Acendeu um Gitanes e aspirou o fumo, deliciado.
- E depois a tua mão ficou grávida de ti. O fim da gravidez correu mal, tiveram de lhe fazer uma cesariana. O médico anunciou-lhe que não poderia ter mais filhos, e além disso ficou com cicatrizes, bastante feias. Isto para ela era duro; porque, sabes, era uma bela mulher… Não éramos infelizes os dois, nunca houve entre nós uma discussão séria, mas a verdade é que eu não falava muito com ela. Há também o violino, acho que ela nunca devia ter parado com ele. Lembro-me de uma noite, na porte Bagnolet, vinha eu do trabalho no meu Mercedes. Já eram nove horas mas ainda havia engarrafamentos; não sei o que desencadeou a coisa, talvez os prédios das Mercuriales porque eu trabalhava num projecto muito semelhante que achava sem interesse e feio, mas vi-me dentro do meu carro no meio dos desvios de ligação de acesso rápido, diante daqueles edifícios imundos, e de repente disse para mim mesmo que não podia continuar. Tinha quase quarenta anos, a minha vida profissional era um sucesso, mas não podia continuar. Em poucos minutos decidi fundar a minha própria empresa, para tentar fazer arquitectura tal como a entendia. Sabia que ia ser difícil, mas não queria morrer sem ao menos ter tentado. Apelei aos antigos companheiros das Belas-Artes, mas estavam todos instalados na vida – também eles tinham triunfado, e já não lhes apetecia muito correr riscos. Lancei-me então sozinho. Retomei o contacto com o Bernard Lamarche-Vadel: tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, tínhamos simpatizado um com o outro, e ele apresentou-me a gente da figuração livre: Combas, Di Rosa… Não sei se já te falei de William Morris…
- Já, sim, papá, acabaste há cinco minutos de me falar dele.
- Ah… - Interrompeu-se, e atravessou-lhe o rosto uma expressão alucinada. – Vou experimentar um Dunhill… - Puxou algumas fumaças. – Também é bom; é diferente dos Gitanes, mas é bom. Não percebo porque é que toda a gente deixou de fumar de repente.
Calou-se, saboreou o seu cigarro até ao fim. Jed esperava. Lá fora, muitoa o longe, uma buzina solitária tentava interpretar «Nasceu-nos um menino»; falhava notas e repetia; e depois voltou ao silêncio: não houve concerto de buzinas. Nos telhados de Paris, a camada de neve era agora espessa, estabilizada: havia qualquer coisa de definitivo naquele silêncio, pensou Jed.
- William Morris era próximo dos pré-rafaelitas – continuou o pai -, de Gabriel Dante Rossetti ao princípio, e de Burne-Jones até ao fim. A ideia fundamental dos pré-rafaelitas é que a arte começou a degenera logo após a Idade Média, que desde o início do Renascimento se separou de toda a espiritualidade, de toda a autenticidade, e se tornou uma actividade puramente industrial e comercial, e que os assim chamados grandes mestres do Renascimento – quer sejam Botticelli, Rembrandt ou Leonardo da Vinci – na realidade se comportavam pura e simplesmente como chefes de empresas comerciais; exactamente como hoje em dia Jeff Koons ou Damien Hirst, os grandes mestres do Renascimento dirigiam com pulso de ferro oficinas de cinquenta, ou até cem assistentes, que produziam em cadeia quadros, esculturas, frescos. Eles, pessoalmente, limitavam-se a fornecer a orientação geral, a assinar a obra acabada, e sobretudo dedicavam-se às relações públicas junto dos mecenas do momento – príncipes ou papas. Para os pré-rafaelitas, tal como para William Morris, a distinção entre a arte e o artesanato, entre a concepção e a execução, devia ser abolida: todo o homem, à sua escala, podia ser um produtor de beleza – seja na produção de um quadro, de uma peça de vestuário ou de um móvel; e igualmente todo o homem tinha o direito de, na sua vida quotidiana, estar rodeado de objectos belos. Ele aliava esra convicção a um activismo socialista que o levou, cada vez mais, a empenhar-se nos movimentos de emancipação do proletariado; pretendia pura e simplesmente pôr fim ao sistema de produção industrial.
«O que é curioso é que Gropius, quando fundou a Bauhaus, estava exactamente na mesma linha – talvez um pouco menos política, com mais preocupações espirituais, embora na realidade também ele tenha sido socialista. Na Proclamação da Bauhaus de 1919 declara pretender ultrapassar a oposição entre arte e artesanato, proclama o direito à beleza para todos: exactamente o programa de William Morris. Mas a pouco e pouco, à medida que a Bauhaus se aproximou da indústria, tornou-se cada vez mais funcionalista e produtivista; Kandinsky e Klee foram marginalizados dentro do corpo docente e, no momento em que o instituto foi fechado por Goering, a verdade é que ele se passara para o serviço da produção capitalista.
«E nós, nós não estávamos verdadeiramente politizados; mas o pensamento de William Morris ajudou-nos a libertar-nos do interdito que Le Corbusier lançara sobre qualquer forma de ornamentação. Lembro-me de que Combas era inicialmente bastante reservado – aquele não era verdadeiramente o universo dos pintores pré-rafaelitas; mas tinha que concordar que os motivos de papel pintado desenhados por William Morris eram belíssimos, e quando compreendeu de verdade do que se tratava tornou-se um total entusiasta. Nada poderia dar-lhe maior prazer que desenhar motivos para tecidos de decoração, papéis pintados ou frisos exteriores, repetidos em todo um conjunto de edifícios. No entanto os da figuração livre estavam bastante sozinhos na época, pois a corrente minimalista continuava a ser dominante e o graf ainda não existia – pelo menos não se falava nele. Então montaram-se processos para todos os projectos mais ou menos interessantes que eram objecto de concurso, e ficou-se à espera…

O pai calou-se de novo, ficou como que suspenso nas suas recordações, e depois encolheu-se, pareceu tornar-se mais pequeno, adelgaçar-se, e Jed tomou então consciência do arrebatamento, do entusiasmo como que ele estivera a falar naqueles últimos minutos. Nunca desde criança o ouvira falar assim – e pensou imediatamente que nunca mais tornaria a ouvi-lo falar assim; ele acabava de reviver pela última vez a esperança e o fracasso que constituíam a história da sua vida. Em geral, uma vida humana pouca coisa é, pode resumir-se a um restrito número de acontecimentos, e desta vez Jed compreendera de verdade a amargura e os anos perdidos, o cancro e o stress, e também o suicídio da mãe.
- Os funcionalistas estavam numa posição dominante em todos os júris… - concluiu o pai suavemente. – Eu esbarrei num vidro; todos nós esbarrámos num vidro. Combas e Di Rosa não recuaram imediatamente, telefonaram-me durante anos para saber se alguma coisa se desbloqueava… Depois, vendo que nada acontecia, concentraram-se no seu trabalho de pintores. E eu tive mesmo que acabar por aceitar uma encomenda normal. A primeira foi Port-Ambarès – e depois acumulou-se tudo, sobretudo arranjos de estâncias balneares. Arrumei os meus projectos em pastas de cartão, que continuam num armário do meu escritório, no Raincy, poderás ir lá vê-los…
Reteve-se quando ia a dizer «depois de eu morrer», mas Jed compreendera perfeitamente.


O Mapa e o Território | Michel Houellebecq / 2010