homem em queda







[Rua Marquês de S. Vicente, Rio de Janeiro, 11.11.2011]




São 23h37 no Rio de Janeiro. A Marquês de S. Vicente está tranquila depois ao princípio da noite a Gávea e todos os bairros limítrofes à Rocinha terem sido sobrevoados por helicópteros e de, pela janela, entrar o ruído dos tambores da guerra e do trânsito pesado, presumivelmente, militar. 
O rapaz que me trouxe o jantar trouxe também notícia dos restaurantes e bares vazios do Baixo-Gávea e do deserto de gente da Marquês de S. Vicente. A bonança antes da tempestade anunciada. Uma calma de morte.


Estou preso. Impossibilitado de livremente e em segurança circular. Uma primeira experiência de cárcere em meio o teatro das operações de uma guerra que tem o princípio agendado para as 05h00 desta madrugada. 
notícias do dispositivo militar já em movimento pelas ruas. O Leblon, onde o solo e o imobiliário é transaccionado ao mais elevado valor da América do Sul, serve de entreposto aos tanques da guerra. A Rocinha, a poucos quilómetros, aguarda.


Os media - ou perverso monopólio imperial da Globo - exibem uma exaltação quase libidinal com as imagens e palavras de batalha. Guerra pela Paz, anunciam o absurdo paradoxo, enquanto convocam o espectador para um universo maniqueísta, de bons e maus, de heróis e bandidos.




Outra exaltação e exultação, em Itália celebra-se a queda de Berlusconi. Depois de Papandreou na Grécia, Berlusconi é o segundo primeiro-ministro de uma país europeu a cair por força dos mercados. Ambos devidamente substituídos por técnicos, os quais, com responsabilidades recentes no edifício financeiro europeu. O edifício que agora colapsa e arrasta economias, sociedades, e ilusões. E vidas.
Já antes o primeiro-ministro de Portugal, tal como o da Irlanda, fora substituído no dealbar da crise das dívidas, mas estes, apesar de tudo, legitimamente eleitos pelos respectivos concidadãos. A vez da Espanha, no próximo domingo.
Sopremos sobre a poeira veloz que assenta sobre a realidade à velocidade da informação: ainda teremos saudades de Il Cavalieri. Agente de uma perversa forma de exercício do poder, exercia-o legitimamente, escrutinado pelos eleitores italianos.
A queda do último citizen Kane foi o salto no abismo da Europa. A admissão de que está entregue a poderes difusos e dissimulados que escapam ao contrato democrático e ao escrutínio público. A política ruiu logo onde a humanidade a inventou. A democracia estilhaçou-se no território onde, com muito sangue, foi inventada. A república agora mera abstracção dos mercados.

















Enquanto se anima o Jornal das 10 da Globo News com implacável sorriso, interrompem-se os directos da Rocinha com os do festival SWU  - Começa com você | Conscientização pela sustentabilidade, convém de cedo industriar as almas na neo-religião verde, para alimentar o neo-mercado verde, com consumos verdes - onde, no palco, Snoop Dogg verte mais uma performance da sua arte, impregnada dos valores amesquinhastes de que se alimenta a própria indústria: machismo, sexismo, consumismo, alienação, verdes e sustentáveis, evidentemente. A seguir, a leveza e a pop deliciosa, nas palavras do repórter, dos Black Eyed Peas. A juventude em marcha para a grande sociedade do consumo. Compra compra e sarei felice, na próxima notícia constam as medidas do governo da presidenta Dilma para contraria a contracção, que se prevê acentuada, da economia global e evitar o regresso do Brasil a níveis de crescimento, sic, medíocres. Juros e facilidades de consumo amplamente democratizados. O mundo todo alinhado pelo dogma materialista do crescimento. E do crescimento sustentado no consumo. Haverá um enfarte, de tanto o mundo consumir. Até lá, a alienação. E a felicidade ostentada por um honesto cidadão, em frente à câmara, ao tomar conhecimento desse incentivo petista ao consumo, quando inquirido pela televisão numa loja de automóveis onde se preparava para adquirir a sua desejável viatura.





Zapping à Sic Internacional e a uma minguante e desajeitada manifestação em Aveiro contra o encerramento de serviços de saúde. Portugal envelhecido. Este país não é para velhos. Este país não é para novos. Este país está em lenta agonia.


Silenciosamente, lentamente, imperceptivelmente, ao longo das últimas décadas construímos um país que agora reconhecemos e nomeamos como ruína. 
Na ruína coincide a natureza com a cultura. Nesta ruína do Portugal contemporâneo experimentamos a coincidência da paisagem abandonada, desertificada, arruinada, com a sociedade que se não reconhece mais a si mesma, que se desvinculou da sua história, da sua cultura e do seu futuro. A ruína da paisagem é o preço a pagar pela alienação em ar-condicionado do shopping mall e do glamour da(s) moda(s) ansiosa(s) que a televisão dita. É uma paisagem e uma casa portuguesa, com certeza.
Depois do fim do império, do desfazer dos sonhos europeus, no regresso às fronteiras do séc. XIII, o regresso a índices e à realidade como catálogo da pobreza (material).Depois do lead dos jornais que noticiavam que metade dos portugueses ainda não tinham adquirido – consumido – uma peça de roupa desde o início de 2011, a reinvenção da profissão do engraxador, agora abrilhantada e actualizada pelo design dos alunos do IADE. O design lobo que fetichiza o objecto e a mercadoria e que, com pele de cordeiro, sensibiliza e se sensibiliza com a crise económica. Viver habitualmente sim, mas embalado por design consumível.

















Falta ainda percorrer algumas horas até à invasão da Rocinha. A roça que até há poucos anos produzia alimentos para a Zona Sul do Rio. A roça onde se foram fixando, a partir das décadas de 40 e 50 os migrantes maioritariamente nordestinos, e que encontraram alguma oportunidade nos trabalhos da construção dos novos bairros da cidade, Ipanema, Leblon.
100.000 pessoas obrigadas à pobreza e à marginalização em busca de um módico de dignidade numa sociedade herdeira directa da escravocracia. 
A guerra, o estado de excepção, o Homo Sacer, destituído de direitos mas ainda assim obrigado a um vínculo social que o prende à própria opressão. O abandonado necessita de alguém que o abandone e nesse exílio dentro de si mesmo jamais se desvinculará desse que o abandona. Jamais terá a condição da liberdade.



[Daqui]


O estado de excepção, expressão cada dia mais recorrente nos media portugueses e europeus. Estado de excepção, estado de possibilidade de instalação de todo o tipo de arbítrio e discrição acima da lei. A impossibilidade de pensar o real além da saída única e última que o pensamento único apresenta. A moralidade é frágil, a excepção a força das coisas.




60% da área ocupada pela Rocinha está acima da cota 100, cota a partir da qual não é permitida qualquer construção, na cidade do Rio de Janeiro. A Rocinha ocupa um território muito apetecível: excelente localização, ente a Zona Sul e a Barra, com vista sobre a espectacular paisagem e o mar. Acima da cota 100, a excepção à lei que e necessidade construiu na Rocinha facilmente o mercado imobiliário reverterá em regra.
Não são necessários dotes de vidente para perceber que serão as disposições do mercado a agir imediatamente após a performance do dispositivo de guerra. Depois da violência ostensiva do aparato mediático e militar seguirá a violência silenciosa, mas não menos assassina, do mercado imobiliário.
Mais sucintamente, o mercado inflacionará exponencialmente o valor fundiário, assim se dê a pacificação. Pode ser que este seja o novo nome, politicamente correcto, do que eram as remoções.
O cartão postal mostrar-se-á ainda mais brilhante e luminoso: o poder político, inefável, cúmplice – alguém que não um incauto espectador do império Globo acreditará que o miserável Nem é a cabeça, o signo, de todos os fantasmas que povoam a polis carioca?, que é na desterritorialização do traficante de maconha e cocaína, que serve os mauricinhos da Zona Sul, ainda que tenha proventos de 8.000.000 de reais por mês que, segundo o próprio, metade dos quais iriam para bolsos de forças policiais corruptas, que se resolverá o problema da pobreza e das feridas sociais que ocupam democraticamente o território da cidade com excepção do bairro do Leblon?-, o poder político serve-se da cidade e das feridas que a rasgam para se servir dela. Comunica uma cidade pós-moderna, global e limpa e pacificada erguida sobre a violência, o sofrimento e a morte. Purificada de tudo o que possa machucar a imagem da televisão de efeitos globais com devida ressonância na economia que tem interesses no território da cidade.
O Homo Sacer permanecerá exluído e preso, mas agora longe das câmaras, do afã da copa e das olimpíadas, e da força das coisas do mercado imobiliário.




Hoje, agora, no Rio de Janeiro, há homens com hora marcada para morrer. Não há muito a fazer. Apenas acompanhar a emissão em directo da Globo News.




Há homens com hora marcada para morrer
As minhas orações estarão com eles.







Para a Matilde.