[O Globo, 25.11.2010]
Talvez o poder esteja hoje menos na acção que na
comunicação, subvertendo a operatividade dos conceitos e, em primeira análise,
o próprio étimo das palavras. Se a acção sobre a polis se submete, agora, à acção comunicadora, subverte-se o principado da política que
possui uma legitimação, nas sociedades ocidentais, que emana do processo da
democracia representativa.
Os acontecimentos são programados não pela política,
em vista à prossecução de um projecto comunitário, escrutinado pelo voto
universal, mas pelos media, que servem interesses que nãos os do bem comum,
ainda que legítimos. O acontecimento tende a ganhar estatuto de realidade passando
a realidade a ser construída a partir da programação do acontecimento e da
sucessão destes. E aqui abre-se a porta à completa desvirtuação e desmontagem
de um sentido do real porque, a partir daqui, o sentido do real é transmitido –
em directo, ao vivo – pela narrativa mediática. Assim foi a última madrugada no
Rio de Janeiro:
- A encenação de uma guerra, com termos, retórica e
todos os instrumentos adoptados pela comunicação do estado de excepção ou
emergência.
- A utilização, encenada também, do dispositivo
militar. O objectivo parece claro, em vista à manipulação do medo das classes
médias – as de poder aquisitivo, evidentemente – para garantia de obtenção de
votos e audiências.
- A estratégia da comunicação, essa da manipulação
do medo e dos fantasmas mais profundos de cada indivíduo, recusa qualquer
cedência ao logos, não exibindo
qualquer argumentação lógica. Naturalmente o recuo da lógica e da racionalidade
é ocupado pelo pathos, a-racional, e
pela estratégica manipulação das emoções da audiência – e somo todos
espectadores.
- A partir do discurso bélico ergue-se uma estrutura
comunicacional maniqueísta, como cortina de fumo sobre a realidade. Panis et circensis que desvia o olhar de
problemas tão fundos como o conluio polícia-crime. A exibição do ridículo luxo das casas do Nem ou de outro
qualquer miserável bandido é o
epítome do mal. O signo do criminoso que oprime os pobres bons que são agora
resgatados pelo Estado.
Um outro aspecto é o uso da metáfora bélica para
demonstração inequívoca de uma acção sobre o território. A narrativa
prevalecente, dos heróis do lado do bem contra os bandidos do mal começou a
tomar forma quando o Rio de Janeiro assegurou a realização da Copa 2014 e das
Olimpíadas 2016. São, portanto, globais, os interesses que se movem em direcção
à cidade do Rio de Janeiro e são esses que estão em confronto, muito para além
da ingenuidade bem intencionada de muitos.
A ocupação dos morros pelas UPP’s será, quando
muito, um golpe para o pequeno traficante, o desgraçado que vende a maconha a
retalho à elite da Zona Sul, mas não
atingirá o grande tráfico que prosseguirá tranquilamente a sua actividade,
devidamente respaldado em ramificações na política e nas forças policiais. Mas a ocupação terá influência forte sobre a
valorização imobiliária nas zonas circundantes – como aconteceu com a
valorização de cerca de 100% do valor imobiliário no Botafogo, após a ocupação
do morro da Dona Marta – e mesmo no interior das favelas.
Pode-se compreender reprodução vertiginosa da
insegurança e do medo, a narrativa oficial, como subjacente à construção de
shoppings e condomínios fechados, espaço para onde se auto-segregam os de maior
poder aquisitivo. Como se pode compreender, à luz dessa mesma narrativa, os
interesses que se escondem por debaixo dela neste Rio de Janeiro pré-Copa e
pré-Olimpiadas. Provavelmente os interesses que segregarão ainda mais, para
mais longe (das câmaras da TV), quem agora, nesta narrativa épica, está a ser
resgatado pelo Estado.
Acabou a guerra que nunca houve. Apenas media e a
política. Por esta perversa ordem.
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panis et circensis
- | João Amaro Correia / 14.11.11
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