O Estado caixeiro-viajante


Shibbolethm | Doris Salcedo / 2007



Sempre que se discute o encerramento de serviços públicos no interior do país, como actualmente se discute o encerramento de balcões da Caixa Geral de Depósitos (e sua substituição, em zonas rurais, por caixeiros-viajantes em carrinhas), lembro-me de um artigo do filósofo inglês Roger Scruton sobre a importância da icónica cabina telefónica britânica (publicado em 1996 na revista norte-americana City Journal e em 2000, em Portugal, na colectânea "Paradigma Urbano", da editora Quetzal).

Para Scruton, a estrutura de ferro fundido e vermelho imperial não alberga apenas a função telefónica. Ela é também uma promessa de resguardo e auxílio, no bulício opressor da cidade ou na solidão distante de um percurso rural ("o símbolo reconfortante de um lar, com o qual se pode, a qualquer momento, estabelecer um contacto apaziguador").

Mas mais: na consistência e dignidade do seu estilo clássico, a cabina é, em todas as paragens, "a imagem acabada da ordem pública e legítima, que simboliza a identidade nacional e se assume como uma promessa de segurança e de estabilidade institucionais".

Roger Scruton parece por vezes um santo padroeiro das causas perdidas, um daqueles conservadores hiperbólicos, em permanente estado de elegia, que descortinam a ameaça da desordem eterna na mais ínfima mudança da ordem conhecida. Nesse artigo queixa-se da substituição progressiva da cabina telefónica "familiar" por uma versão moderna, "bárbara", que "não representa a estabilidade nem a ordem, mas a agitação frenética de uma mutação constante".

Porém, o artigo tem um subtexto interessante na ideia de que até o mais pequeno elemento de serviço público pode afirmar uma soberania nacional e incutir um espírito comunitário, de pertença, que enquadre e dê sentido à conflitualidade e à superficialidade transitória dos assuntos humanos.

Em muitas cidades, vilas e aldeias do interior de Portugal, o que hoje mais impressiona é a ausência cada vez maior de marcos da soberania nacional - que, goste-se ou não, é afirmada pela presença do Estado.

Falo de terras que ficaram sucessivamente sem hospitais e centros de saúde, urgências e maternidades, escolas e postos dos Correios, quartéis da guarda e esquadras da polícia, tribunais e repartições de Finanças. Da presença do país a que pertencem, sobra-lhes apenas o pelourinho ou o castelo medieval, que falam de outros tempos, imemoriais, e a televisão ou a rádio, que falam quase sempre de lugares desconhecidos.

Não discuto a racionalidade económica imediata das decisões que nos trouxeram até aqui (nem acho que o caso da Caixa seja especialmente grave). Apenas lamento que Portugal se leve tão pouco a sério, a ponto de nunca debaterem os riscos de se retirarem referências de coesão e identidade comum a uma grande parte do território.

É claro que para esse debate será necessária a existência de uma esquerda que não deteste a ideia de mação, ou de pátria, e de uma direita que não abomine a ideia de Estado. Ou seja, uma esquerda que perceba que é a nação que melhor reproduz o sentimento de destino partilhado indispensável às políticas de solidariedade que defende; e uma direita para a qual o anti-estatismo seja só a vontade liberal de remeter o Estado ao seu papel subsidiário, não uma demanda melancólica, pré-moderna, pela sua aniquilação.

Enquanto tal maturidade política não existir, vai permanecendo a dúvida: por quanto mais tempo serão aquelas terras, remotas e descartáveis, ainda Portugal?



Francisco Mendes da Silva | Jornal de Negócios / 19.04.2017