através das barricadas












Um livrinho que nos possa ser muito útil, nos dias que passam, é o de Job. Bem longe de se constituir metáfora da desventura humana, da impotência e fragilidade de cada um diante do poder do Criador, poderemos mesmo tomá-lo na literalidade do texto.
Senão, vejamos: Job, homem justo e bom, confiante e temente a Deus, passa por infindáveis e dramáticas tribulações. O tema tão antigo da correlação do modo como se vive com o modo como «a vida corre», nas palavras dos três amigos de Job que, diante dos horrores e das dores por que passa Job, lhe encontram, com certeza, alguma culpa para que Deus faça descer sobre ele as penas mais dolorosas que sobre um homem se possam acometer. Mas de entre os equívocos em que os homens vão representando Deus ressoa a falta de humildade. O orgulho como resposta óbvia à injustiça e à humilhação, para depois, no fim, vir Deus – vem sempre - reclamar, apenas, que o homem olhe com um pouco de atenção às maravilhas e à beleza da criação. E se submeta, humilde, a essa beleza e maravilha.
Ocorre-me o desgraçado do Job a propósito da vagabundança diária por jornais, blogs, facebooks, esplanadas, jantares, por todos os lugares onde a opinião se verta livre e destemperadamente.
A presunção da democracia (liberal) é a discussão. De que da discussão entre argumentos díspares e mesmo antagónicos surja uma resposta de Verdade. Mas esta mitologia, e todos temos que as ter, decorre de uma outra que, creio, ser bem mais perversa. Penso ser, aliás, essoutro pressuposto intelectual e cultural a grande perversão da modernidade: a luta de classes.
No dizer de Raymon Aaron o marxismo é a doença infantil dos intelectuais. Como todo o vírus que se espalha pelo corpo de forma velada e dele se alimenta para crescer, também o marxismo (cultural) alcançou o corpo académico, político e social, enfermando-o, hegemonicamente. Ainda que os amanhãs não cantem mais, ou que deles apenas ouçamos requiems, a atmosfera cultural que nos cobre é, sem dúvida, a do marxismo.
É evidente que de um postulado da que convoca as «massas» à luta - massa, coisa informe, homogénea, amorfa, pronta a ser enforma, moldada, claro doutrinada – não poderá senão prenunciar um devir de disrupção e violência. Por alguma razão fazem os historiadores iniciar a era que habitamos nas barricadas parisiennes de 1789. Mas o devir já não é longínquo. Parece que, segundo essa leitura determinada e determinista, as contradições do capitalismo são tantas e tais que este se encontra de momento no se estertor. Antes assim o fosse.
Mas a irrazoabilidade marxista sustenta-se em equívocos e mentiras das quais não pode, necessariamente, decorrer a Verdade. Nem como grelha de sobrevoo ao real o marxismo nos serve. A História não se constitui a partir da história da economia – embora também a contemple – e o real não se resume ao visível – embora este seja parte do outro. Mas sem dúvida que a excrescência anacrónica marxista domina e nos domina hoje: das redações dos jornais às cabeças simples que nos representam na instância política; das activistas consciências de sofá à derrocada europeia organizada e comandanda por velhos militantes soixante-huitards e saudosistas de Mao tranquilamente sentados às mesas bruxelenses e apressadamente convertidos às virtualidades do mercado (nb. não são os sacerdotes e ideólogos neocons / neoliberais americanos, advogados da intervenção americana no Iraque, da exportação à bomba do bravo mundo novo da democracia, eminentes ex-trotskytas das universidades Ivy-League de costa este?, mais espertos e lavadinhos que Chomsky & Klein?)
A pugna igualitarista – que distorce o real, tratando o que é diferente como igual; que elide a distinção e a individualidade e mergulha a diferença e a heterogeneidade no mar da «massa» homogénea (consumidora, afinal) indiferente. A aberração racionalista que planifica, no mais amplo sentido do plano, o real e o mundo, presumindo-o flat (chato) como uma folha de Excel. O ódio profundo ao real, aos homens que constroem o real, na tentativa de, por decreto, mudar o mundo a partir daquilo que cada um tem de mais íntimo, intransmissível, pessoal: a consciência, o coração. O desprezo pelo Homem e pela sua circunstância, projectando milenaristas amanhãs que cantam, paradoxalmente aqui e agora, apodados de utopia e, um pouco mais pateticamente, sonho.
Este movimento, associado à hiper-interpretação (protestante? Justiça seja feita a Lutero e sequazes, venceram o combate cultural), as mais das vezes, acrítica e acéfala, de todos os sinais, palavras, gestos, imagens, torna qualquer movimento do pensamento refém do medo que se esconde atrás de cada barricada e cada convicção, tornada dogma ateu de consumo doméstico, a única bóia de salvação num naufrágio generalizado em que nos afogamos.
A torção e distorção das palavras e dos conceitos, segundo a, lá está, interpretação subjectiva, que denuncia – outro vício marxista, a bufaria – qualquer hipótese de intersubjectividade, sem a qual o indivíduo não se poderá constituir em comunidade. E sem comunidade, hélas, o indivíduo definha, no meio do orgulhoso credo da auto-suficiência e emancipação.
A doença, que coloca as ideias antes da pessoa, a convicção antes da vida, o eu antes do outro, não permite mais que, à noite, se dobre o joelho sobre a terra e nos conformemos com a meia-luz que nos cobre. Confunde-se justiça com orgulho e soberba, saber e sabedoria com esperteza, e conceitos, caridade (amor, nunca é demais repeti-lo) com vínculos de solidariedade estatais, impessoais, que despessoalizam, que nos despessoalizam, que nos desligam do próximo, do outro, do mundo.
O espaço público, de onde se afasta Deus e o Homem, é construído agora por berros e gritos e surdez e ódio que nos divide, e dividirá cada vez mais, apresentando-se como a vitória final da perversão marxista: pôr-nos uns contra os outros, desestruturando comunidades, famílias, amigos. Fazendo uma leitura cínica (marxista) dos dias que correm, o histrionismo solipsista – ah, a emancipação do sujeito – que, paradoxalmente, numa sociedade mediática, se propaga com cada vez mais clangor, veemência e soberba, constitui a vitória última dos ‘interesses’ a quem melhor serve a atomização da(s) sociedade(s). E a esses, lamentavelmente, não chegam, nunca chegaram nem chegarão, as pedras revolvidas da calçada.
Talvez fosse bom pensarmos em desmantelar as barricadas. Talvez fosse útil enterrar as trincheiras em que todos apenas nos defendemos (quando pensamos que atacamos).
Talvez seja de maior urgência o regresso ao deserto. Como e com Job.