subREAL


[Rua da Escola Politécnica, Lisboa, 2010]



É infinitamente possível para não ousar dizer certo
(nossa única razão é a de não tê-la)
que essa manhã de inverno de onze de Abril de mil novecentos
e setenta e oito no calendário do papa Gregório XIII
(feito para recuperar os dez dias de atraso do tempo ocidental
acumulado pelo tempo solar desde o Imperador Juliano)
é infinitamente possível que a claridade de inverno desta manhã
o sol claro e frio de uma primavera gelada
a erva gélida coberta de geada e os tordos
a debicar pelo prado as últimas maçãs esquecidas
e a gata sinuosa com sua veste cinza malhada a caminhar
pelo muro com doçura e os gritos das crianças
a brincar pelo caminho e posto ao lado da xícara de café
o jornal de ontem à noite que discursa em duas colunas
sobre o próximo aumento do preço do petróleo
e o rastro a céu aberto de um invisível avião
que ergue na vertical uma enfiadura de longo fio branco
e o grande despertador de ferro a soar na cozinha
e todo o etcetera de uma manhã comum
- é infinitamente possível que tudo isso e você e eu
já acontecera acontece acontecerá de novo
acontecera acontecerá numa manhã quase igual
inverno quase idêntico quase tão frio a um grau de proximidade
num Abril muito parecido com o de agora
com a mesma geada e os mesmos cristais de gelo
o mesmo verde da erva com a diferença mínima
de alguma partículas apenas a mais ou a menos
com os mesmo tordos de ventres avantajados a debicar as mesmas maçãs
podres a mesma gata cinza e pouco importa
se as malhas não são exactamente sobreponíveis
ao gato de alguns milhões de anos atrás ou ao gato
de um futuro anterior análogo ao presente
já que podemos considerar praticamente negligenciável
que haja entre os tic-tac dos despertadores a soar
(os quase mesmos na repetição do tempo)
como nos batimentos cardíacos dos corações seus e meus
uma diferença de ritmo tão infinitesimal
que nenhum ouvido mesmo o de Deus se ele existisse
não perceberia
e da qual não se dá conta o cálculo sideral
que arredonda as cifras que nega as diferenças e abole
a ilusão de que cada um é único exclusivo primeiro
último
Mas se tudo isso e todo o etcetera do catálogo das coisas
existentes
se tudo que está aqui na mesma claridade pura
acontecera acontece acontecerá cada elemento
desta manhã de inverno sol erva geada pássaros
gato crianças jornal café avião despertador Loleh
e eu cada um porém tomado pelo sentimento
de que não há mais do que uma única manhã aqui dia fugaz
um único sol para nunca e nunca mais
seu repousar. Mas a gata e o tordo e o traço
branco no céu vivo rasgado pelo avião
e o despertador e o seu coração e o meu se
sentem irremediáveis os exclusivos os sem-iguais
perecíveis evasivos apagáveis de tal forma únicos
no mundo
que talvez já os tenha visto e os voltará a ver
talvez
Mesmo se nós acontecêramos e somos mesmo se outros
nos aconteceram
mesmo se imutáveis e incontáveis são os céus
os invernos e incontável o amor eu nomeio entretanto
aquilo que só acontece uma única vez que acontecerá sempre





[O tempo que faz, Claude Roy, trad. Cláudia Pessoa]