Campo do Sargento, Complexo do Alemão, Rio de Janeiro É, provavelmente, a área mais segura do Rio de Janeiro. Ou a isso leva a concluir o aparato securitário propositadamente visível. Entra-se tenso, ingenuamente e no desconhecimento que o conhecimento pelos media oferece. Entra-se e confrontam-se imagens de uma zona de guerra, imagens de Bagdade ou Gaza ou um qualquer serviço informativo: fuzis displicentemente apontados à cabeça dos transeuntes pelas brigadas de soldados que patrulham as ruas em camiões; regimentos inteiros da polícia, de todas as polícias, armados para uma guerra total; esquadrões de guerra urbana. A visibilidade de uma guerra que não é guerra, mas que em tudo parece à guerra, é, sobretudo, a evidência – e a violência – do estado a entrar pela primeira vez em territórios há muito abandonados e deixados à sorte da ausência de lei e de todos os interesses menos os do bem comum. Como fossem guardiões de uma paz imposta e que flanqueia as ruas, mas a vida corre habitualmente, sem medo, por entre as armas. A noite era de excepção no Complexo do Alemão. Caetano Veloso encerrava um festival de música e tocaria as canções votadas pelos habitantes do Complexo. A festa, portanto, a oportunidade dos moradores se juntarem, a oportunidade de reafirmarem a pertença e a existência, a oportunidade de se verem e serem vistos na televisão, a oportunidade da cidade e do país os reconhecer, a oportunidade do estado brasileiro assegurar ao mundo que está a trabalhar na segurança (das vagas de estrangeiros que invadirão o Rio até 2016, passe o cinismo), a oportunidade de nada correr mal numa imagem de cartão postal, oportunidade para o comércio do bairro apressar umas barracas na rua e exercer a sua quota na lei da oferta e da procura. Crianças imitam com ingenuidade os gestos e movimentos libidinosos da Beyoncé ou do hip-hop mtv, moleques jogam à bola e saltam na lama, os brotinhos vestem o melhor vestido comprado no pobre comércio local rondadas pelos garotos musculados do funk carioca, as mulheres trabalham como trabalham todas as mulheres em todo o mundo e em todas as condições, os homens sentam-se nos botecos improvisados à volta da cerveja e do churrasco e do futebol. Fusão de hiper-moderno e de muito arcaico. Confundem-se imagens, desejos e apetências culturais da globalização (norte-americana) com as formas antigas das relações (de parentesco, de solidariedade, de vizinhança). O desejo mistura-se com a necessidade numa promiscuidade que não é moral mas antes estética e cultural. Os padrões urbanísticos e arquitectónicos multiplicam-se no improviso e no inesperado, numa margem nunca planeada nem racionalizada. Falta razão a estas arquitecturas, mas explodem em liberdade e invenção. Não há a ciência do custo/benefício, da produtividade e da performatividade, mas a genuína sageza ancestral da sobrevivência e viabilidade do que se constrói e de quem constrói. Não há planos de saúde nem PPR’s, mas uma estratégia social e individual tão antiga como a história do Homem em sobrevir à inexistência. É tudo em estado bruto, do amor ao terror, da alegria ao medo, da partilha à violência, da geografia à arquitectura, da natureza das coisas que confunde o bem e o mal. Havia festa na aldeia e, como em todas as festas de todas as aldeias de todo o mundo, dançava-se, cantava-se, partilhava-se. Caetano Veloso abrilhantava o bailarico. Os fuzis vigiavam a alegria. |
a voz humana
- | João Amaro Correia / 16.5.11
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