E era tranquilamente nada.*


Rio de Janeiro, Baía da Guanabara



Sou agora a distância entre o meu nome e eu. E tão mais é significativo entender isto agora porque nunca, até hoje, o tinha entendido.
Sou o caminho sempre inacabado. Irrepetível. A medida do que esqueço. A memória, a superfície real do corpo, que cobre todo o esquecimento.
Estou em casa e o meu caminho é a minha morada.



Aos 14 anos, num entardecer, Lúcio Costa entra na Guanabara à cadência da sucessão Pão de Açúcar, Corcovado, Pedra da Gávea. Imagino que a um adolescente, habituado à placidez da campagne francesa ou ao cosmopolitismo de Londres, tenha sido impressiva a visão das três desmedidas e singulares pedras que se erguem na paisagem da baía. Era quase de noite. Só à luz dia seguinte o jovem Lúcio Costa pôde viver a cidade.
Mas antes, a experiência inicial foi a do granito negro ao crepúsculo. E que impacto terá tido dessa experiência? Uma madrugada em que se poderia ter fundado no jovenzinho Lúcio a possibilidade de o novo não colidir com o antigo mas o novo ser uma maneira de permanentemente o reactualizar; que o novo apenas surge onde já exista o tempo antigo. (O moderno não ser tão só uma pobre (e estéril) quebra do arcaico e, a respeito disso, a ideia de que ao purismo da forma – uma pureza assente num pressuposto de verdade - necessariamente não terá de corresponder uma quebra com os vínculos da tradição e do vernáculo.) Um terceiro continente.



Zona Sul

Atravessar a Vieira Souto ao fim da tarde, como quem suspende os negócios do Centro, o comércio agitado do Saara (numa estranha e inesperada aproximação do acrónimo às formas relacionais e comerciais quase árabes), a vizinhança ruidosa do Botafogo, a fogosidade limite da Lapa, as patricinhas arranjadas para a balada do Leblon, a Copacabana venal e a Copacabana da classe média idosa e orgulhosa, a jovem guarda artística do Arpoador, o túnel entupido e Miami Vice no silicone e arquitecturas malhadas pelos EUA da Barra, a elegância inacabada de outro século parisiense do Flamengo, a solidão apinhada das vans na enseada a caminho da Zona Norte, o racismo mais amplamente democrático do corpo e do desejo da loira da morena da branca da preta da mulata, e tu, do outro lado, Lisboa.



*Clarice Lispector