Rio de Janeiro, Centro
1. Antes de vir morar para o Brasil não sabia que aqui se diz “agora Inês é morta” a propósito do que já não tem solução. Descobri isso num jantar de amigos cariocas em que, além de mim, mais alguém se chamava Coelho e pôs a origem do nosso sobrenome em cima da mesa: de onde viria? Há quem o associe com cristãos-novos, porque quando a Inquisição portuguesa forçou judeus e muçulmanos à conversão, muitos tomaram nomes de plantas e animais. Mas Coelho já existia como sobrenome, e, para dar um exemplo, nesse jantar citei Pêro Coelho, um dos assassinos de Inês de Castro. Então, como nem todos os amigos presentes identificavam Inês de Castro, voltei atrás para contar a história, e agora vou fazer o mesmo, rapidamente. Aconteceu mais de um século antes antes de qualquer europeu avistar esta margem do Atlântico Sul. Ia ser rei de Portugal D. Pedro I quando se tomou de amores por uma dama vinda na corte da sua noiva. Estavas, linda Inês, posta em sossego De teus anos colhendo doce fruto contou Camões. Crescemos com isto em Portugal, ainda mal sabemos ler. E não nos poupam ao sangue: Inês é linda e logo a seguir é morta. A luta pela coroa engendrou o crime: Inês era filha bastarda de um cavaleiro galego com uma dama portuguesa; os seus irmãos conspiravam contra Castela e queriam enredar Pedro nisso; o pai de Pedro, rei D. Afonso IV, temeu que a conspiração deitasse a perder a coroa portuguesa; então, para cortar de vez o laço entre o seu filho e a linda Inês, mandou que dois homens a degolassem. Bem cantou Camões o colo de alabastro, que outros disseram ser de garça. Cinco anos depois a fúria de Pedro ainda fervia e abateu-se sobre os assassinos. A lenda é que arrancou o coração de um pelo peito, o coração do outro pelas costas, e trincou ambos antes dos corpos serem queimados. Por isso ficou para a história como Pedro, o Cru. Mais: dois anos depois disso, ou seja, quando Inês já estava morta há sete, ordenou que a desenterrassem, transferiu o corpo de Coimbra para Alcobaça e coroou-a Rainha, obrigando toda a corte a desfilar perante ela, beijando-lhe a mão. Ainda mal sabemos ler e Inês é aquela “que depois de ser morta foi rainha”, imortalizada no Canto III dos Lusíadas. Mas esse amor além da morte foi tão carnal em vida que deu à luz cinco filhos nas várias camas que os amantes partilharam, Portugal fora. Pedro amou Inês antes, durante e depois de ser casado com a dama de quem Inês era prima e fora companhia. Funda-se assim o amor português numa história toda ela fora da lei. Muitos anos depois de Camões li outra obra-prima da literatura em português inspirada por Inês de Castro, o conto que Herberto Helder escreveu do ponto de vista de um dos assassinos: Pêro Coelho. Eis a herança do sobrenome que no tal jantar de amigos, aqui no Rio, eu partilhava com Frederico Coelho, carioca do mundo e desta casa, aliás. E entre o coração desfeito do rei e o coração arrancado ao assassino, foi o Frederico quem de repente exclamou: “Por isso dizemos no Brasil: agora Inês é morta!” 2. As palavras sobrevivem à sua origem. Somos assim o que já não sabemos de onde vem e o que ainda não sabemos para onde irá. Tanto melhor quanto nos formos achando em-nós. Olho para estas três metades tão desiguais, Portugal, África, Brasil, e o que cada vez mais vejo em-si é o Brasil. Uma palavra vai-se repetindo na minha cabeça: soberania. O Brasil é não apenas um país-continente sem inimigos, como conseguiu o prodígio de inspirar revolucionários até do outro lado do mundo que não falam uma palavra de português. Porque construiu uma nova democracia em 25 anos. Porque descobriu que tinha petróleo mas isso não tornou os pobres mais pobres. Porque caminha de uma pirâmide de desigualdades brutais para um losango. Visto do outro lado do mundo, o Brasil é o país que levantou a cabeça, mostrando que as riquezas naturais não têm de ser uma maldição, e que a desigualdade brutal não é crónica. Foi assim que há semanas me falaram do Brasil — personificado em Lula — os jovens acampados na praça Tahrir, lá no Cairo, durante a revolução que levou à queda de Mubarak. No tempo da deslocalização, o Brasil emergiu simultaneamente como uma inspiração global e uma nação soberana. Não conheço outro exemplo. Essa inspiração e essa soberania têm uma raiz comum: os muitos milhões maiores-que-a-vida, índios, pretos e mulatos, que aqui não foram devorados pela História mas afinal a devoraram, aqueles que nunca deixaram de fazer o Carnaval mesmo que tudo acabe na quarta-feira, porque a verdade é que tudo recomeça na quinta. A alegria é uma arma soberana. Contra todas as evidências em contrário / a alegria, diz um verso de Manuel Gusmão, poeta português contemporâneo. Se há um país do futuro será esse, o da alegria contra todas as evidências. Não o Brasil do nicho que esteve bom para “playboys”, coronéis e ditadores, e hoje continua a estar. Não esse nicho displicente, incapaz de ver e ouvir para além das suas grades e das suas “grifes”, que reduz o Outro à caricatura, seja ele português, africano, muçulmano, nordestino, favelado, ou um daqueles sem-tecto do centro do Rio de Janeiro que lembram os intocáveis da Índia. Displicência é ignorância. No melhor dos casos, uma risada. No pior, arrogância, preconceito, racismo. Esse nicho será o Brasil da flor cortada, sem raiz. Vai pondo água para não murchar, e por baixo da pele não resta nada. Mas o Brasil que vi no Carnaval é o avistado por Oswald de Andrade, aquele em que todos se comem e ficam mais fortes. País de asa no quadril, a levantar o chão com os pés, voando com todas as raízes. 3. Há umas semanas falei da pujança que o Brasil vive num colóquio realizado no Porto, Norte de Portugal. Não foi um momento pacífico. Um académico francês achou que eu estava a desprezar a Europa e uma programadora alemã achou que eu tinha uma visão idílica do Brasil. Mas nunca me achei tão europeia como agora, e justamente como europeia e para europeus me pareceu importante falar do que no Brasil está pujante. E morando aqui como correspondente de um jornal, o que implica conviver com o resultado de séculos de desigualdade, desde a colonização portuguesa, vejo todos os dias a diferença entre pujança e idílio. O que emergiu desse colóquio foi uma expressão da crise europeia. Não sei se é o medo que acentua a crise se é a crise que acentua o medo, mas o medo é uma perda de soberania, escrevi então numa crónica. Vou citar uma parte: “Viver o Brasil agora é uma experiência de exposição a essa energia que trespassa o corpo como trespassa a língua. Sendo eu portuguesa, há nisto um sentido político construído pelo passado. Mas o futuro do nosso passado é sempre feito a partir deste exacto momento, e se isso é válido para o passado individual também será válido para o passado comum. A identidade não se perde, está em movimento. Ser lisboeta-português-europeu será uma carga fixa que cada um funde com outras como pode ou quer. Muito mais que o sentido político passado — gerador de toda uma bibliografia colonialista, pós-colonialista e pós-pós-colonialista — interessa-me o sentido político futuro, por exemplo a forma como o brasileiro absorve o estranho, o estrangeiro, o bárbaro. A sabedoria que faz o brasileiro ficar soberano.” Fim de citação. Não podemos andar em frente com a cara sempre voltada para trás, como o Anjo da História pintado por Klee que assombrou Walter Benjamim. Há que conhecer a História, mas conhecer a História não evita o pior do que somos, e o pior do que somos está à nossa frente a cada dia. Eis o verdadeiro desafio: honrar os mortos é cuidar dos vivos. Então finco o pé no chão e ponho a mão no quadril daquela passista da Mangueira que me tentou ensinar a voar: “É para a frente”, dizia ela, um pé adiante do outro. 4. Quando aterrei no Galeão chegada do Cairo, senti como nunca que estava a vir do Velho Mundo, e como Europa e Oriente Médio são tão o mesmo mundo, por serem Velho Mundo. Mas se posso dizer “o meu Brasil”, o meu Brasil é do mundo, mesmo que aqui o mundo páre para o Carnaval passar. É uma ideia no coração do jovem revolucionário Khaled, que por sua vez inspira algum jovem em Luanda ou em Lisboa. Depois do Cairo, Luanda saiu mesmo à rua, ainda que tenham sido poucos. E depois Lisboa saiu mesmo à rua e foram muitos. Eu vi a luz em um país perdido. É um verso de Camilo Pessanha, poeta português do começo do século. Meses antes disso, em cima do Viaduto do Chá, em São Paulo, eu tinha visto a luz de um país perdido: o prodígio de à minha volta toda a gente falar português. Foi numa manhã cor-de-cinza, depois de passar dias entre libaneses e judeus, japoneses e italianos, do bairro da Liberdade ao Bom Retiro, da Haddock Lobo ao Mercado Central. Eram todos brasileiros e falavam português. É a isto que chamamos epifania, a súbita revelação de algo permanente: 190 milhões de brasileiros a falarem português. Talvez Portugal só tenha existido para nos deixar a todos uma língua: nós, árabes, judeus, índios, africanos, europeus. Então, esse será o nosso país comum do futuro. 5. Stefan Zweig disse que o país do futuro era o Brasil, e isso foi uma maldição antes de ser verdade. Ruy Belo — que fez um poema do tamanho de um livro sobre Inês de Castro e lhe chamou Margem da Alegria —, disse que o país do futuro não era Portugal. E Lula Pena canta, a partir de Antonio Cícero, que jamais foi mais escuro no país do futuro — e da televisão. É sempre escuro no país do futuro porque falta fazê-lo, e ninguém o fará senão nós. Portanto, quanto a Atlânticos e Índicos em todas as suas margens falantes de português, acredito que Inês não é morta. Depende de haver quem fale e quem escute, como podemos escutar Lula Pena e ela ser fado, morna ou Caetano Veloso, sendo única: ela própria. Eu, que ouvi mais morna que fado, e certamente muito mais Caetano Veloso, até do outro lado do mundo, a levantar voo de Cabul, bebo a isso, e canto com a Lula: entre milhões de humanos, e siderais enganos, eu quero-te abraçar. Acredito no ar que inspiramos, todos. Alexandra Lucas Coelho Texto para o seminário A Terceira Metade, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 31-03-2011 |