felicidade clandestina*


Vila Cruzeiro, Rio de Janeiro, 26.11.2010

A transformação da realidade operada a partir das palavras é um exercício que encerra perigos e obriga-nos à desconfiança. A partir da instauração do mundo, que é em todo o esplendor, o poder e acção da palavra, a realidade constrói-se também pelos desvios a que submetemos a palavra. O perigo é a cegueira ao real provocada por uma vontade ideológica; e a desconfiança de incorrer-se em equívocos num trabalho sobre a realidade.
Chamou-me de início a atenção a substituição, no discurso oficial e oficioso, da palavra favela pela de comunidade. Intrigante mudança de nome que, desconfiado – ou cínico –, me remetia para a imposição semântica do politicamente correcto. Se favela transporta o óbvio estigma produzido e reproduzido e difundido de pobreza, miséria, violência, doença e morte, comunidade pretendia, como que por ordem superior, transformar esse estigma, evidentemente uma generalização equivocada, numa realidade que deturpasse as duras condições de vida da favela. E também, que remetesse para as sombras, essa realidade de pobreza, miséria, violência, doença e morte que também existe na favela.
Percepção e preconceito são inseparáveis, mas, só por medo, despudor ideológico, ou ignorância, alguém, depois de um ou dois segundos de reflexão sobre a condição da favela, poderá consentir que os quase 20% de habitantes cariocas que moram em favelas serão todos portadores do estigma que se associa ao lugar de onde provêm.
Mais interessante é a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de aglomerados normais, a cidade formal, e aglomerados subnormais, a favela. Esta caracterização, ela sim, preconceituosa e ditada por uma ideia de cidade obediente ao desenho autoritário de arquitectos e urbanistas e cientistas e políticos, é feita a partir de noções de desorganização, ausência de estruturas e infra-estruturas básicas (escolas, centros comunitários, redes de água, saneamento e internet, etc.) que, pura e simplesmente, não coincidem com a realidade da favela.

A originalidade da favela, contraposta à cidade do asfalto, constitui-se no uso criativo dos materiais encontrados na cidade do asfalto – a cidade formal na construção da qual trabalhavam os primeiros favelizados e das sobras da qual extraíam os materiais para a construção das suas próprias casas nos morros baldios – a ocupação densa e aparentemente desorganizada do território, e o projecto como processo sem final determinado, (nem relação de poder e hierarquia decorrente de uma vaga legitimidade académica ou científica), mas antes sustentado nas necessidades elementares do habitar e nas possibilidades e contingências da vida quotidiana.
As relações sociais tecidas nestes territórios alcançam, evidentemente, um grau de comunitarismo que a cidade formal, genericamente ainda decorrente dos princípios da Carta de Atenas, não estimula e muito menos permite.
Evidentemente que uma favela é uma comunidade. O comunitarismo da favela, com as suas frágeis redes de solidariedade e de vizinhança, serve aos moradores da favela como contraponto à precariedade das suas condições existenciais e debilidade das suas casas. É a resposta espontânea de um grupo à adversidade e exclusão imposta por inúmeras e complexas razões.

Ainda que o território labiríntico da favela, não concebido pelas leis da vigilância e do higienismo modernista, construído sobre uma dramática geografia, permita esconderijo fácil aos bandos do narcotráfico e a irrelevância da Lei do Estado de Direito democrático, não chega como motivo para a demolição das casas e das condições que aqueles indivíduos ergueram na contingência das suas vidas. Arrasar cegamente e a eito as favelas, a sua substituição por tipologias urbanísticas que satisfazem o olhar eruditamente treinado do arquitecto é, também, uma forma de violência contra a vida e os laços relacionais dos habitantes das favelas.

Ao isolamento do indivíduo, costumizado e fantasiado de si mesmo, embriagado no shopping mall contemporâneo e global, habitante efémero e nómada de torres tecno-ecológicas do Dubai e de células em Tóquio, ou encerrado em «novos paradigmas do habitar» dos mais mediáticos nomes da arquitectura e da especulação, a favela oferece uma visão do território e da vida radicalmente diferentes e provavelmente incompreensíveis a quem reduz o mundo e o outro a imagens.
Aos habitantes da cidade do asfalto global, para quem a favela é uma excrescência na paisagem, cabe perceber que o preconceito e o julgamento moral a que estão sujeitos os favelizados é alimentado pela cada vez mais poderosa máquina criminosa que envolve o narcotráfico, políticos inescrupulosos, magistrados corruptos e polícias vendidos que mantém reféns os moradores da favela.
Ao alcance de todos está o entendimento de que comportamentos criminosos e acções violentas de uma ínfima minoria - poderosa e pelo terror dominadora - não justificam a demolição homogeneizadora do que o favelizado ergue com suor e dor e amor.

Aos arquitectos pede-se uma intervenção sobre o real. A denominação de comunidade pode transportar a boa vontade das intenções dos políticos e cientistas que trabalham para tornar a condição de favelizado mais próxima da dignidade, mas elide todo um mundo de relações, humanas, urbanísticas e arquitectónicas, de realidade construida e em construção. Um bom princípio para não se derramar todo o preconceito apreendido nos bancos da escola (moderna) sobre a vida e realidade de quem constrói e habita a favela é o entendimento do que ela significa. É esse o sentido e o mistério da palavra e das cidades.


*Clarice Lispector