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[Contingente, Adriana Varejão, 2000 ]
A política cultural brasileira
Em Março deste ano, na abertura da II Conferência Nacional sobre Cultura que reuniu em Brasília cerca de três mil pessoas entre investigadores, professores universitários e centenas de delegados do Ministério da Cultura do Brasil (MinC), o presidente Lula da Silva marcou dois pontos altos no seu discurso. O primeiro foi dar a informação de que o orçamento do Ministério da Cultura para o ano corrente seria de 1 por cento do Orçamento Geral do Estado brasileiro, o que corresponde a 2,2 mil milhões de reais (quase 954 milhões de euros). É o maior orçamento da história deste ministério, inigualável em termos percentuais, quer em relação a outros países da América Latina, quer em relação à Europa ocidental. O outro ponto alto foi o anúncio de que, caso a candidata do PT, Dilma Rousseff, vencesse as eleições de amanhã, era certo que o orçamento para a cultura em 2011 subiria para 1,5 por cento do Orçamento Geral do Estado. Parte deste aumento dever-se-ia ao facto de o Governo brasileiro ter decidido que uma das cinco áreas de investimento a privilegiar com os recursos do pré-sal (exploração dos novos poços de petróleo) seria a da cultura.
É um facto que já estávamos em campanha eleitoral, razão para também estarem presentes nessa conferência a própria candidata e o ministro da Cultura, Juca Ferreira, mas o MinC confirma estes valores, embora também se afirme que até ao mês de Setembro a taxa de execução não tinha ultrapassado os 60 por cento.
Como e em que se traduz este orçamento? Corresponde a cerca de 0,7 por cento das receitas totais dos impostos da União. A este orçamento do Estado haverá que acrescentar cerca de 61,2 milhões de reais (26,5 milhões de euros), dinheiro proveniente da Petrobras, empresa petrolífera brasileira que funciona como um ministério paralelo e cujas verbas são doadas ao abrigo da Lei Rouanet (a lei do mecenato), cujo tecto este ano pode chegar aos dois mil milhões de reais (867 milhões de euros).
A estas verbas devem ainda ser acrescentadas as verbas para a Cultura de cada estado e de cada prefeitura (município), que são bastante desiguais e razão de alguns desequilíbrios de produção e difusão cultural. O Brasil, é sabido, vive um momento invulgar de crescimento económico e de protagonismo internacional que se reflecte em todos os sectores das actividades sociais. As actividades culturais e as artes também reflectem este momento histórico. Para tanto há que reconhecer o papel de uma sociedade civil dinâmica e criativa, da emergência de um mercado das artes nacional, que no eixo São Paulo-Rio-Belo Horizonte estimula uma produção continuada, e que os mesmos protagonismos e visibilidade têm repercussões na internacionalização desta criação, bem como na diplomacia cultural.
Boom no mercado das artes
Na semana da abertura da 29ª Bienal das Artes de São Paulo (começou a 25 de Setembro e termina a 12 de Dezembro), a imprensa anunciava que o mercado da arte vive um boom tal que se previa que nessa mesma semana 250 milhões de reais (108 milhões de euros) entrassem no Brasil através do mercado das artes visuais.
Novas galerias surgem a todo o momento. No início da década eram 50 no eixo principal Rio-São Paulo, hoje são 90. A música popular brasileira é escutada em todo o mundo: da China a Portugal; o cinema brasileiro está presente em festivais e em salas europeias e sul-americanas, bem como no próprio Brasil, onde hoje já vai sendo possível ver documentários em sessões da tarde nos cinemas do Rio e de São Paulo, apesar de ainda haver problemas de distribuição. Há festivais de teatro, de dança, de literatura - a FLIP (Feira Literária Internacional de Paraty) é uma referência mundial na área dos livros e da literatura; a moda e o design brasileiros são hoje exemplares para a moda e o design europeu e norte-americano; os artistas brasileiros são expostos nos museus londrinos, franceses, nova-iorquinos, as suas obras atingem valores recorde nos leilões de arte contemporânea. É de facto um momento singular para a cultura artística brasileira.
Como é que isto acontece? Pelo momento económico fortíssimo cuja crise, aliás, não afectou a economia brasileira. E no que diz respeito à diplomacia cultural e à criação interna, pelo estatuto positivo que a cultura ganhou nos governos do presidente Lula. Para tanto foi fulcral que o músico e cantor Gilberto Gil tivesse assumido a pasta da Cultura. Com Gilberto Gil - que não é do PT mas sim do Partido Verde e que já tinha experiência governativa em Salvador - a cultura ganhou uma dimensão simbólica fulcral no quotidiano das pessoas, ao mesmo tempo que ganhava peso político e orçamento. Muitas vezes criticado pela lentidão e pela complexa agenda de músico no activo e ministro, Gil conseguiu, contudo, impor a cultura como uma prática humana e social reconhecida pelo sector político e social, estruturou o Ministério da Cultura, criou legislação conforme às necessidades de uma política cultural programática, incluiu a cultura digital como prática artística reconhecida pelo MinC . Esteve atento às práticas culturais populares, fossem elas originárias dos subúrbios, do Nordeste ou dos índios. A cultura passou a ser tema de debate normal entre os brasileiros. Tendo deixado o ministério em 2008 sucedeu-lhe Juca Ferreira, que já trabalhava com Gil desde 2003.
Quem é Juca Ferreira? Um sociólogo - João Luiz Silva Ferreira - com uma carreira política que começou em 1968 como presidente dos estudantes do ensino secundário; foi duas vezes vereador em Salvador e é um político pragmático dotado de uma capacidade oratória excelente. Juca Ferreira, não tendo a aura do seu antecessor, continuou a sua política cultural e entretanto conseguiu reforçar o orçamento do MinC, reestruturar o Funarte (fundo nacional de arte responsável pelo apoio às artes), criou alguns sistemas de fiscalização dos subsídios e, mais recentemente, tornou realidade o desejado Instituto Brasileiro de Museus e colocou em discussão no congresso para aperfeiçoamento a Lei Rouanet (a já referida lei do mecenato) e a Lei dos Direitos de Autor, que pretende rever, considerando a complexidade introduzida pelo digital.
Ideias simples, mas eficazes
Um dos aspectos que mais tem consolidado a ideia de um ministério programático é um conjunto de iniciativas relativamente simples no formato, mas até ao momento bastante eficazes no que diz respeito à vontade de incentivar a diversidade cultural e de estimular a produção artística em todo o país. Trata-se da criação de estruturas elementares de fruição cultural e de difusão da mesma. Os mais populares são os Pontos de Cultura. São hoje cerca de 3800 dispersos por todo o país e compõem um mosaico de diferentes formas de expressão: teatro, dança, audiovisual, música, circo e cultura popular (mamulengo, folguedos, artesanatos, hip-hop, capoeira, maracatu, congado, folia de reis e bumba-meu-boi entre outras).
Os Pontos de Cultura desenvolvem distintas actividades: cineclubes, rádios comunitárias, espaços multimedia, mercados alternativos, centros de empreendedorismo, museus, bibliotecas, centros culturais, espaços culturais e de preservação do património histórico, núcleos de memória e centros de cultura digital. Nos últimos seis anos, no total, foram investidos pelo MinC cerca de 500 milhões (217 milhões de euros) em Pontos de Cultura de todo o Brasil. Depois há ainda 514 Pontos de Leitura que funcionam como pequenas bibliotecas em espaços de frequência popular (hospitais e centros de assistência social, por exemplo) e 281 Pontinhos de Cultura onde se desenvolvem acções para as crianças. Há também um forte investimento no audiovisual, que agora tem um fundo próprio, e um Observatório de Informação de Indicadores Culturais a funcionar em permanência. E uma das singularidades foi a criação do Vale Cultura - um vale mensal de 50 reais (quase 22 euros) que é dado às famílias cujo rendimento mensal não ultrapasse cinco salários mínimos (o salário mínimo é de 510 reais) -, uma medida de subsídio aos públicos.
Algumas destas iniciativas de pendor fortemente popular pretendem, segundo o ministro, colmatar aquilo que são as grandes diferenças existentes no Brasil relativamente ao acesso à cultura. Segundo dados fornecidos pelo próprio ministério, apenas 13 por cento dos brasileiros vão pelo menos uma vez ao cinema por ano, 92 por cento nunca entraram num museu, mais de 90 por cento dos municípios não têm sala de cinema, teatro, museus, centros culturais, 93,4 por cento dos brasileiros nunca viram uma exposição de arte. Esta assimetria tem justificado uma política cultural muito vocacionada para uma dimensão mais popular do acesso à cultura a que não é alheio o facto de o Governo ter uma matriz que se configura com o Partido dos Trabalhadores e de raiz sindicalista. Alguns sectores da cultura mais urbana e mais internacionalista têm reivindicado apoios mais estruturantes para áreas como a dança, o teatro, as músicas urbanas e a internacionalização cujos primeiros apoios começaram a ser legislados. Os trabalhadores da cultura e intelectuais reclamam ainda uma reforma da administração do MinC, que acusam de ser excessivamente burocrática e pouco ágil, o que não facilita a aplicação de instrumentos culturais tão importantes.
Na véspera da eleição do novo Presidente da República, que ao que tudo indica será Dilma Rousseff, existem grandes expectativas por parte da comunidade artística e das redes populares entretanto criadas. Porque se é um facto que nunca como até ao presente um governo brasileiro tinha atribuído um tão grande protagonismo ao Ministério da Cultura - o que fez com que primeiro Gilberto Gil e agora Juca Ferreira tenham ganho um tão grande peso no executivo e simultaneamente tenham adquirido um estatuto de figuras fundamentais para a reeleição do PT e do seu candidato -, o que vai fazer o PT, caso ganhe, agora que muitos outros partidos da futura coligação reivindicam esse ministério? E o que vai acontecer a esta figura singular, a este baiano de brinco na orelha direita que é o ministro da Cultura, Juca Ferreira, hoje uma das estrelas do Governo Lula? É um debate que está a acontecer paralelamente a uma das mais conseguidas bienais da história de São Paulo.
António Pinto Ribeiro, Público, 2.10.2010
- | João Amaro Correia / 3.10.10
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