a que distância deixaste o coração [interlúdio]



Coisas tão felizes

Entre amigo e amigo
jamais se afastam
coisas tão felizes:
os instantâneos silêncios de certas formas
os protestos inocentes à nossa passagem
a natureza fortuita, dizia eu
imortal, dizias tu
do vento?





A voz solitária do homem

Há palavras que escrevemos mais depressa
o terror dessas palavras derruba
o passado dos homens
são tão pouco: vestígios, índices, poeira
mas nada lhes é desconhecido
as horas em que vigiamos o escuro
os sítios nenhuns das imagens
a ligeira mudança que resgataria
o abandono, todo o abandono





Da verdade do amor

Da verdade do amor se meditam
relatos de viagens confissões
e sempre excede a vida
esse segredo que tanto desdém
guarda de ser dito


pouco importa em quantas derrotas
te lançou
as dores os naufrágios escondidos
com eles aprendeste a navegação
dos oceanos gelados


não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce
sem rumor



Sobre um improviso de John Coltrane

Ainda espero o amor
como no ringue o lutador caído
espera a sala vazia


primeiro vive-se e não se pensa em nada
não me digam a mim
com o tempo apenas se consegue
chegar aos degraus da frente:
é didícil
é cada vez mais difícil entrar em casa


não discuto o que fizeram de nós estes anos
a verdade é de outra importância
mas hoje anuncio que me despeço
à procura de um país de árvores


e ainda se me deixo ficar
um pouco além do razoável
não ouvem? O amor é um cordeiro
que grita abraçado à minha canção


[Baldios, José Tolentino Mendonça]



Sobre a reedição de um livro. Sobre a amizade. Sobre um homem. Sobre Lisboa. Sobre o que se deixa para trás. Sobre o mar que se estende em frente. Sobre o que se esquece. Sobre o que nunca se esquece. Sobre o que se encontra e rapidamente esquece. Sobre uma cidade velha e uma cidade nova. Sobre o encontro. Sobre o desencontro. Sobre a água. Sobre o pão. Sobre o caminho. Sobre o Tejo que aqui vem dar.
Todos os dias.