[Criação e Salvação, Giorgio Agamben]
Admito a proposta de Agamben, em Criação e Salvação, como uma possibilidade - ainda que desencantada mas ainda em busca de uma luz no meio da escuridão, que para o autor é meio da contemporaneidade - para a necessidade ou pertinência do exercício crítico.
Partindo da tradição exegética dos textos sagrados – da tradição judaica, islâmica e cristã – atribui-se à figura do profeta e do anjo a constituição, o fazer e o desfazer da História. Sendo que em cada uma das duas extremidades da acção divina se encontra a criação e a redenção, à figura do anjo se atribui o fazer, da criação – eventualmente a criação catastrófica, sempre no passado, do Anjo de Benjamin – ao profeta, cabe o dizer e a mediação da criação junto das criaturas. O profeta será esse modo outro de criação pela palavra criadora e incansável e que, em movimento inverso ao da criação, é o que lhe daria o sentido. A inteligência da criação tornada inteligível pela deriva das palavras e que, em certo sentido a tradição rabínica e a islâmica, pelos óbvios motivos da espera em que ainda perseveram, a fazem preceder à própria criação: à acção é necessária uma redenção que a legitime. E é desta luz, humana e frágil, feita carne e som e símbolo, de que decorre a salvação.
O que definirá o estatuto da obra será a resistência à obra-outra do profeta, resistência que insiste no seu «ser-noite», que insiste na opacidade que será o território do profeta.
À modernidade é excluída a profecia como o dizer imperativo da salvação da obra da criação, substituindo-a a filosofia e a crítica; ao anjo da criação sobrevém a poesia, a técnica, a arte. O anjo secularizado, perde a memória dessa relação inextricável em que o poeta era o crítico, e o crítico, agora ressentido, vinga-se em juízos. Como o poeta já não alcançasse salvar a sua obra entrega-se «cegamente à frivolidade do anjo» - e daí a esquizofrenia hediorna desta relação outrora íntima.
A instância do dizer solar sobre os abismos da criação é pois, enredada no acto da criação como «dois rostos de um poder divino» que «coincidem no mesmo ser».
Talvez essa proposição de Kenneth Frampton seja um sintoma desta esquizofrenia ou do nosso esquecimento de um fazer crítico, quando, cínicos, já sabemos que tudo o que é destinado a criar-se é destinado a perder-se. E verifica-se o conhecimento dessa destruição iminente quando as coisas criadas se perdem a um ritmo veloz, nunca antes experimentado pelos homens, atrevo-me a dizer. Recorrer à crítica, ainda que como meio de conhecimento da obra e do mundo, mas como possibilidade de (auto-)entendimentodo do próprio criador pode ser, atrevo-me outra vez, uma resolução arrogante e, tomo uma palavra de Agamben, «frívola». Tal não é decreto da falência da obra, quando esta é apenas meio para a «salvação» do autor. Querer fazê-lo, ao projecto, uma pedra sólida no oceano onde naufragamos é esquecer que o próprio projecto é ele mesmo a viagem desassossegada de tentar responder a questões concretas e objectivas da vida dos homens – uma das quais o desejo, evidentemente – e não apenas à ansiedade do simples homem-criador.
[La lutte de Jacob avec l’Ange, Marc Chagall, 1960.1966]
Porque, justamente, autores, e homens para outros homens, somos na Caverna platónica: a pregnância de crítica e de forma, o projecto como lugar onde se quebra a espinha dorsal do tempo na coincidência da História, só depois as nossas irrelevantes, diria, micro-narrativas.
Sem esperança a vida é impossível, sem o outro, estéril. Assim são as obras dos arquitectos.