uma flecha no coração da noite


[A Torre de Babel, Pieter Bruegel, c. 1563]


[A Torre de Babel, Pieter Bruegel, c. 1563]


ALINE SOLNESS (interrompendo, queixosa) Tu podes construir absolutamente tudo o que quiseres neste mundo, Halvard, mas para mim não hás-de conseguir construir nunca, outra vez, uma verdadeira casa.

[O Construtor Solness, Henrik Ibsen]


Platão concebe o encontro com a beleza como aquele abalo emotivo salutar que faz o homem sair de si mesmo, que o ‘arrebata’. O homem, diz Platão, perdeu a perfeição da Origem que para ele fora concebida. Daí que, agora não pare de demandar a forma primigénia que o há-de restabelecer. A recordação e a saudade incitam-no a essa demanda, ao mesmo tempo que a beleza o arranca do contentamento com o quotidiano. Esta beleza fá-lo sofrer.

[Ferido Pela Seta do Belo, Joseph Ratzinger]


Por mais solicitações que a modernidade e a contemporaneidade, a História, tenham imposto à arquitectura, reconheço-lhe como tarefa primeira o abrigo. E talvez essa pretensão do abrigo seja, no fim de contas, um regresso a um estado inicial de que apenas tenhamos vaga e difusa memória. Um abrigo que subsista no inconsciente colectivo, para usar a descoberta de Jung que articula todas as possíveis invenções culturais da humanidade, e que, ao fim de contas, muito primária e originariamente, poderia servir de modelo às regras que se impõem à construção das casas e das cidades. Uma espécie da cópia do ideal platónico.
Como se aos arquitectos coubesse, pela História, uma repetição dos gestos ocultos de deus no instante da criação, é uma pretensão que não raras vezes se revela na arquitectura e nos arquitectos. Há exemplos recentes disso, no modernismo mais ortodoxo e canónico – evidentemente que não me referirei a Le Corbusier, nem mesmo à suposta cristalização do cânone na Ville Savoye – ou, exemplo hediorno, o Armani Hotel no Dubai, com totalitarização tecnológica – numa presunção triunfalista da técnica – de todo o horizonte em que o humano, de corpo, olhos, língua, mãos, ouvidos, poderá alcançar.
À loucura humana já não basta o abrigo. O conforto de uma casa bonita onde se regressa ao final do dia, um pedaço de espaço para descansar o corpo. À loucura exige-se o domínio total do limite como se este não fosse da ordem e a ordem do real. 360° à roda do corpo que nos propõem esquecer a nossa condição de simples mortais.
Não fosse esta loucura equívoca, estética e ética, não teria sido ela o motivo de muito do sangue derramado pelos séculos.