natureza das coisas
Primeiro Acto
SOLNESS (empurra a cadeira para mais perto e senta-se) Falando a sério, porque é que veio cá? Na realidade veio aqui fazer o quê?
HILDE Oh, em primeiro lugar quero andar por aí a ver tudo o que o que o Senhor construiu.
SOLNESS Então vai ter muito que andar.
HILDE Pois é, eu sei que construiu muitíssimo.
SOLNESS Pois construí. Sobretudo nos últimos anos.
HILDE Muitas torres de igreja? Altíssimas, também?
SOLNESS Não, agora já não construo torres de igreja. E igrejas também não, aliás.
HILDE Então agora constrói o quê?
SOLNESS Casas para pessoas.
HILDE (pensativa) Não podia construir também assim… assim uma pequena torre nas casas?
SOLNESS (intrigado) Que quer dizer com isso?
HILDE Quero dizer uma coisa que aponte para o alto, assim livre, pelo ar dentro. Com um cata-vento tão alto que até dê tonturas.
SOLNESS (pensa um pouco) É muito estranho que me diga isso. Porque é precisamente isso o que eu mais queria fazer.
HILDE (impaciente) Mas então porque é que não faz?
SOLNESS (abana a cabeça) Não, porque as pessoas não querem.
HILDE Imaginem… não querem!
Segundo Acto
SOLNESS E agora nunca mais construo nada assim, nunca mais! Nem igrejas, nem torres de igreja!
HILDE (acena com a cabeça lentamente) Só casas em que as pessoas possam morar.
SOLNESS Casas para as pessoas, Hilde.
HILDE Mas casas com torres altas, que terminam em agulha.
SOLNESS Sim, de preferência. (Num tom mais leve:) Pois, está a ver, como eu disse, esse incêndio fez-me levantar voo.
Como construtor, claro.
HILDE O senhor não se diz arquitecto, como os outros, porquê?
SOLNESS Não tenho instrução que chegue. O que eu sei, na maior parte, aprendi e descobri por mim próprio.
HILDE Mas mesmo assim levantou voo, Construtor Solness.
SOLNESS Graças ao incêndio, sim. Dividi o jardim quase todo em talhões para construir vivendas. E pude lá construir exactamente como eu queria. Tudo me correu lindamente.
HILDE (olha interrogativamente para ele) O senhor decerto é um homem muito feliz. Tal como está na vida.
SOLNESS Feliz? A Menina também diz isso? Como os outros todos.
HILDE Sim, acho que deve ser.
[...]
SOLNESS (continua a fitá-la) Quando lhe contei isto do incêndio… hum…
HILDE Sim?
SOLNESS Não lhe ocorreu nenhuma ideia em especial?
HILDE (reflecte em vão) Não. E que ideia seria essa?
SOLNESS (em voz baixa, marcando bem as palavras) Foi única e simplesmente só depois desse incêndio, e graças a ele, que fiquei em condições de poder construir casas para as pessoas. Casas bonitas, confortáveis, cheias de luz, nas quais o pai e a mãe e a criançada toda pudessem viver seguros e sentir como é bom viver neste mundo. E, acima de tudo, serem uns para os outros, tanto nas coisas grandes como nas pequenas.
HILDE (entusiasmada) Sim, e então não é para si uma enorme felicidade poder construir assim essas maravilhosas casas?
SOLNESS O preço, Hilde. O preço terrível que tive de pagar para o conseguir!
HILDE Mas não será possível superar isso?
SOLNESS Não. Porque para conseguir construir as casas para os outros tive de renunciar, de renunciar para sempre, a ter uma casa para mim. Quer dizer, uma casa para a criançada. E para o pai e a mãe também.
HILDE (cuidadosa) Mas teve mesmo? Para sempre, como diz?
SOLNESS (acena com a cabeça, lentamente) Foi o preço da felicidade, de que me fala essa gente. (Respira pesadamente:) Essa felicidade… hum… essa felicidade não foi nada barata, Hilde.
[…]
SOLNESS Nunca reparou, Hilde, que o impossível como que nos seduz e chama por nós?
Terceiro Acto
HILDE Que quer dizer com isso?
SOLNESS (olha para ela desanimado) Isso de construir casas para as pessoas não vale cinco cêntimos, HIlde.
HILDE E diz isso agora?
SOLNESS Sim, porque agora sei. As pessoas não precisam dessas casas para serem felizes. E eu também não precisaria de uma casa assim. Se tivesse alguma. (Com um riso tranquilo e amargo:) Sabe, é este o meu balanço completo, tanto quanto posso ver para trás. Na realidade, nada construído. E também nada sacrificado para poder construir qualquer coisa. Nada, nada de nada.
HILDE E de agora em diante não quer construir nada de novo?
SOLNESS (vivamente) Ah, sim, é agora mesmo que quero começar!
HILDE O quê? O quê? Diga-me!
SOLNESS A única coisa em que a felicidade humana se pode alojar – isso é o que eu quero construir agora.
HILDE (olha fixamente para ele) Construtor, agora está a referir-se aos nossos castelos no ar?
SOLNESS Os castelos no ar, exactamente.
[O Construtor Solness, Henrik Ibsen]
- | João Amaro Correia / 16.5.10
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