O que aqui se denomina “reflexão” não se refere a um sentir qualquer, mas sim àquele pensamento, no qual toca e oscila o relacionamento do homem com isso que é, com o real. À medida que o homem se relaciona com o real, ele o representa desde o ponto de vista, segundo o qual ele é, como ele poderia e como ele deveria ser – em suma: ele representa o real no tocante ao seu ser. Este re-presentar é o pensamento.
Quem é o Zaratustra de Nietzsche?, Martin Heidegger in Ensaios e Conferências
We've got no future, we've got no past
Here today, built to last
West End Girls, Pet Shop Boys
Se da literalidade de Construir Habitar Pensar ressoa uma ligeira desadequação à época, creio sobrarem pistas, no texto, para uma possibilidade ética – e técnica – para a arquitectura. Nada de original aqui afirmo. O ensaio encima uma genealogia que vai longa e uma tutela teórica a textos fundamentais. Se quisermos, fez detonar o que se poderia catalogar de metodologia fenomenológica à abordagem do projecto. Ela própria responsável pela revisão do cânone moderno.
Desta fractura latente teria o filósofo clara evidência. Da contemplação das extáticas montanhas e o labor incansável sobre a lava incandescente da linguagem eram-lhe sageza, e pensamento, para o entendimento de que nem só das verdades perenes suportaria a vida – individual e social – e o despacho dos assuntos humanos. Como uma pequena luz, no alto da montanha, o entendimento de que a sua própria re-presentação e pensamento sobre o real o afastava dos outros homens por lhes estar vedado, como ao próprio estaria, o absoluto recolhimento na contemplação das questões perenes.
Tal como Zaratustra, Heidegger odiava as cidades. E talvez por lhes assinalar uma existência decorrente apenas da necessidade prática, recusou-se a pensá-las, pensando apenas o habitar como necessidade primeira, antes, como localização, situação, do humano e do pensamento no Mundo – sendo o mundo já a Terra trabalhada pelas mãos humanas. Um retorno, portanto, a proposta heideggariana do habitar, às formas essenciais, impassíveis, rotinadas e ritmadas pelo compasso da natureza como antítese da experiência da cidade.
Ser-se cosmopolita ou provinciano – provincial – pode ser uma maneira de posicionamento, uma tomada de posição em frente à montanha. Mas esta leitura maniqueísta do texto só fará sentido se se omitir que o próprio texto é uma crítica à própria casa camponesa. Na sua desadequação às necessidades da modernidade, na impossibilidade de fazer desabar do céu o paraíso perdido no meio da Floresta Negra ou da planície alentejana, na verificação da imposição quase natural, diria, do humano como ser gregário. Torna-se por isso a crítica cosmopolita-radical, sustentada no valores estritos do racionalismo e do funcionalismo, vaga e ociosa. Sendo até uma outra forma de provincianismo.
Não se trata de uma disputa cosmopolitismo versus provincianismo. Apenas de encontrar no desejo e na necessidade também da época uma possibilidade de construí-la de acordo com o que é. Nem paraísos perdidos nem a veleidade futurista, sempre promessas catastróficas. É capaz de ser um legado do anos 80 – se lhe excluirmos o hedonismo radical e a cocaína.
[Fondation Cartier, Jean Nouvel, 1994]