O corpo, a origem e o sagrado no Cinema: uma introdução

[Aurora, Murnau, 1927]











O cinema sempre teve uma relação particular com o sagrado por ser uma arte que parte da imagem do real para o desconstruir e que ao recria-lo com a sua própria ordem lhe dá um novo sentido. Enquanto sistema simbólico desenvolvido à volta da criação do mundo e da existência do homem o cinema representa uma excelente via de reflexão existencial e metafísica sobre o mistério da espessura da realidade.

A filmologia analisou o problema da origem a partir da perspetiva da sala de cinema como fantasma uterino, como lugar iniciático que leva o espetador a um estado de regressão. Hoje, com as novas formas de percepção a partir do ecrã de televisão e do computador, essa possibilidade de retorno à origem desaparece, pelo menos é reduzida. Assim, a abordagem deste texto parte da forma como o cinema, enquanto objeto fílmico, representa o sagrado a partir da sua imagem do corpo} considerando que a origem do sagrado se situa no real.

A representação do corpo evoluiu ao longo da história do cinema. O plano, nos primeiros filmes da história do cinema, tinha um enquadramento geral e fixo e por isso era chamado "plano-quadro" porque a câmara estava na plateia. As personagens atuavam como se estivessem num palco de teatro, gesticulando de forma exagerada, para que o espetador percebesse claramente qual era o sentimento ou a emoção expressos. Os rostos não se viam porque o enquadramento afastado dos corpos não permitia a percepção das suas expressões. Para mudar de ação, mudava-se o cenário, mas guardava-se o mesmo enquadramento. Quando D. W. Griffith aproximou a câmara dos corpos, cortou-o aos pedaços (escala de planos) mas o cinema ganhou uma nova linguagem fílmica e o ator encontrou uma nova forma de expressão. Já não precisava da pantomima para ser visto. Pelo contrário, com o grande plano, a expressão tinha que ser contida para não cair na caricatura.

Infelizmente, a imagem do corpo tornou-se rapidamente artificial e contribuiu para a criação de um star system que se servia do poder fotogénico da câmara para criar personagens idealizadas. Por outro lado, ao longo da sua história o cinema mostrou que teve sempre a preocupação de se renovar} encontrando novas formas estéticas e narrativas. Por exemplo, a força expressiva do grande plano permitiu-lhe desenvolver uma natureza sagrada, e revelar-se uma "arte espiritual" como o definiu Henri Agel em 1952.

Hoje, o cineasta francês Bruno Dumont fala de "místíca do cinema", que pode ser entendida como interrogação perante o mistério da existência humana e as suas contradições. Nesse caso, a câmara afasta-se dos corpos para os investir da atmosfera do espaço em que se encontram.



Rever o conceito de "sagrado"

Definir o conceito de sagrado revela-se particularmente importante porque vários cineastas contemporâneos ao afirmarem-se ateus, não deixam de procurar exprimir o sagrado ou a espiritualidade na sua obra.

O que é o sagrado hoje? Definir o sagrado contemporâneo não é tarefa fácil, depois de uma secularização cada vez mais óbvia das sociedades. No entanto, o sagrado continua a ser procurado e expresso, em particular pela arte. E se o sagrado está a transformar-se, libertando-se da iconografia tradicional religiosa, ele está presente de forma implícita, em particular no realismo. A forma como alguns cineastas tratam a imagem do corpo permite ao espetador fazer a experiência direta do sagrado; é aliás um espaço de manifestação contemporânea do sagrado.

Pode-se continuar a entender o sagrado como força transcendente? Será que hoje a experiência fílmica do sagrado pode ser feita sem a presença explícita do religioso, levando à criação de uma nova estética do corpo cinematográfico? Marie.José Mondzain define o sagrado como uma energia:

«É uma energia e nada mais, mas uma energia específica porque paradoxal: é uma potência sísmica, um estrondo da natureza que pode ser destruidor como construtor. ( ... ) É a manifestação de intensidades contraditórias no coração do mundo, enquanto este mundo é primeiro uma experiência do real antes de ser a representação regulada de uma realidade simbolizável» (traduzido pela autora deste texto), Marie-José Mondzain, "De la sacralité d'une oeuvre profane. Quelques remarques sur les films de Tarkovski", Croyances et sacré au cinema, Paris, Charles Corlet, 2010, pp. 157-158.

Pode-se acrescentar que o sagrado é uma "energia do real" constituído por uma série de pequenas forças que despertam o respeito, a distância, a admiração, a aversão, o medo e muito mais.



O grande plano e a origem do sagrado fílmico

Por exemplo, em A Paixão de Joana d'Arc de Carl Dreyer já não é o tema religioso que toca o espetador mas a expressão transcendente que se manifesta em todos os grandes planos do filme. Da força do Mal à fragilidade da inocência, nada escapa ao olhar háptico da câmara. O sofrimento de Joana d' Arc parece projetar-se para além da superfície do ecrã. O grande plano funciona como uma revelação da alma e como imagem do desejo. Joana d'Arc procura a voz divina e a Inquisição quer condená-la à morte, por heresia, ou simplesmente pela necessidade de sacrificar uma vítima para reencontrar um território pacífico (interior e exterior). O grande plano é o plano da presença e do contato direto com o espetador. Carl Dreyer criou uma imagem da natureza humana, no seu extremo sofrimento ou no seu gozo sádico, retirando o artifício estético para reforçar o realismo das emoções.


A história de Joana d'Arc acaba por ser a revelação do sagrado, através da procura do divino. O grande plano representa o ponto de vista da jovem mártir de duas formas: Joana d'Arc transcende a realidade porque tem uma experiência mística com Deus, mas simultaneamente é particularmente sensível à presença do mal, porque está inocente. Os grandes planos acentuam a força ameaçadora dos seus acusadores e através da passagem de um rosto a um outro, o cineasta questiona a condição humana: o "rosto" do sofrimento entra em conflito com o "rosto" do mal que existe no ser humano. Se o grande plano dá origem à experiência do Sagrado, é porque apresenta uma imagem do invisível e revela uma realidade que transcende o espetador. O enquadramento frontal e aproximado como um ícone transfigura as personagens, cuja luz interior se encontra projetada à superfície do seu corpo.

Em A Paixão de Joana d'Arc, a origem do sagrado está na procura de Deus, mas é sobretudo a partir dos afetos e das emoções expressos pelo grande plano que o espetador faz a experiência do sagrado.



A ausência de Deus como origem do sagrado

Ao contrário de A Paixão de Joana d'Arc que utiliza a forma estética, o neorrealismo italiano procura revelar a complexidade da experiência humana através da "imagem-fato", que André Bazin definiu como uma imagem sem pretensão semântica à priori, porque o espetador encontraria o seu significado quando fizesse a sua associação com outra imagem-fato.


Para Bazin, o neorrealismo baseia-se na fenomenologia estética. Não existe uma relação de causalidade entre as imagens na narrativa do cinema neorrealista: tal como no mundo, as imagens não têm uma ordem predeterminada. Numa realidade regida pelo aleatório, o homem deve ir à procura da ordem para dar sentido à sua vida. No seu ensaio sobre espiritualidade e media,Ron Austin lembra que no cinema neorrealista, o caráter das personagens não é psicológico, mas é fundado a partir da sua expressão e dos seus gestos, e por isso reforça a "intuição de ser". Gilles Deleuze atribui-lhe uma temporalidade específica: a imagem-tempo remete para um cinema onde o tempo é privilegiado à ação e as suas personagens existem, simplesmente. Os corpos desligam-se cada vez mais da ação e estão apresentados na sua condição presente.

Roberto Rossellini, em Alemanha Ano Zeroprocura exprimir o Sagrado através de um encontro entre a realidade exterior e o espaço interior (mental e emocional) do ser humano. Pode-se falar em "realismo fenomenológico" porque é um realismo que quer exprimir a totalidade do ser através do mundo das aparências. Por exemplo, Rossellini utiliza planos afastados para permitir uma interpretação da ação cinematográfica, não impondo a sua visão do mundo, porque mostrar o sofrimento, a tragédia} pode transformar um olhar observador num prazer voyeur, e acabar por cair num "fato-espetáculo". Em Alemanha Ano Zeroexiste uma "suspensão metafísíca", que nasce da relação que existe entre as personagens e o mundo visível: quando o pequeno Edmund atravessa as ruínas da cidade destruída antes do seu suicídio, existe uma decalagem entre a consciência e a paisagem que não se fundem mas entram em ressonância, uma com outra.

É a aparente ausência de Deus na narrativa que reforça a presença invisível da transcendência. A atmosfera que se exprime da relação entre o corpo jovem e as ruínas urbanas cria uma "aura" na imagem. Esta atmosfera é composta por forças opostas: o sagrado da vida confronta-se com a violência da realidade. Em Alemanha Ano Zero,as atitudes das personagens são muitas vezes ambíguas porque são atitudes existenciais que não são predeterminadas. Quando Edmund dá o veneno a beber ao seu pai, ele acredita realmente que está a libertá-lo; é para o bem do seu pai. Rossellini procura o sagrado no mistério da existência, sem tentar explicar o porquê do absurdo e da desordem do mundo. É na graça que ele o encontra, porque é ela que constrói a liberdade do ser humano. Para o cineasta, a integridade é o que torna a alma mais forte, e é mais potente do que qualquer arma. O sagrado é a possibilidade que o homem tem de lutar contra o Mal e de sentir a força da vida, mesmo nos momentos mais dolorosos.



Pier Paolo Pasolini: o profano como origem do sagrado

Na obra de Pasolini o sagrado ocupa um lugar particular: para ele, o princípio imanente do sagrado encontra-se no interior do real, isto é, o espetador deve descobrir o sagrado numa dimensão mais profunda da realidade, porque a sua natureza não é sensível.


A origem do sagrado está no homem e a melhor forma de o captar é mostrar o corpo do homem tal como é na vida. A câmara pode revelar a natureza sagrada do mundo a partir da imagem dos rostos e das suas expressões, afastando-se das formas plásticas convencionais.

Quando, na cena da Adoração dos Magos em O Evangelho Segundo Mateus, Pasolini reenquadra em zoom o rosto de um jovem em vez de mostrar a oferta que esse tinha para o menino Jesus, ele manifesta o sagrado (que existe na humanidade) através da imagem de humildade e de inocência num rosto. É também uma forma de se afastar de um materialismo alienante que induz um falso encontro com o sagrado. O marxismo de Pasolini está patente na opção de filmar nos bairros pobres para voltar a uma origem, não conspurcada pelo capitalismo.

A partir da técnica cinematográfica procura exprimir sinais reveladores do sagrado no mundo, como a presença de Jesus Cristo e a sua mensagem aos homens. Pasolini quebra com a estética clássica de representação do sagrado (como a que Dreyer utilizou em A Paixão de Joana d'Arc) para criar tensões e conflitos formais. É nessas rupturas que se exprime o sagrado como a suspensão temporal de um olhar silencioso: por exemplo, quando João Batista reconhece Jesus na cena do batismo, existe como uma ruptura no tempo e no espaço: o momento torna-se atemporal, porque transcende o real e o silêncio dos olhares manifesta a realidade e o sagrado do encontro.

Pasolini recusa o enquadramento tradicional do ícone que pode levar à idolatria: Jesus nunca é divinizado, mas apresentado como um homem simples que procura compreender o mundo para o tornar mais próximo do sagrado. Os movimentos óticos da câmara são violentos e criam uma sensação de instabilidade no espetador. O filme abandonou a invisibilidade da montagem em raccord, deixando a técnica sensível. Pasolini apela a uma participação ativa da parte do espetador para que ele seja sensível à manifestação do sagrado presente no filme.

No cinema a questão do sagrado está mais próximo do humano do que do estereótipo do divino, para encontrar um lugar original onde o transcendente e o imanente coexistam, por exemplo no tempo. Vimos que o movimento neorrealista foi o primeiro a privilegiar a relação que o mundo tem com o tempo, que por sua vez investe a sua passagem no corpo das personagens. Com ou sem Deus, o homem atravessa a vida e as suas dificuldades} sendo o seu corpo a prova da sua presença no mundo real. O movimento do tempo leva-o por um caminho desconhecido que o obrigará a decidir se quer lutar com ou para a vida.

Aurélien Liarte mostra que, hoje, a remanescência do sagrado está mais ligado ao espaço imaginário do corpo do que ao corpo propriamente dito. Roger Bastide fala de "sagrado selvagem", sem estrutura simbólica na sua metamorfose contemporânea . O sagrado esta hoje confuso e ainda não encontrou o seu território. É um "sagrado híbrido" que está "em trânsito", à procura de um reconhecimento para ser legítimo. No entanto} cada vez mais} o sagrado tende para o domínio do sensível ".

Julia Kristeva interroga se o sagrado poderá ter uma temporalidade determinada: «O sagrado, passagem fora do tempo. está provado de começo e de fim. Quando começa o momento sagrado? Não se sabe bem» (traduzido pela autora deste texto. Julia Kristeva, Catherine Clément, Le féminin et le sacré, Paris, Tock, 2007, p. 252).O sagrado está sempre ligado à temporalidade, de uma forma finita ou infinita. A sua representação cinematográfica através da imagem dos corpos na obra de John Cassavetes, e em particular em Faces,marca uma nova reflexão sobre a relação do ser humano com a sua condição existencial.



O corpo que resiste

Se Pasolini se serviu do "profano fílmico" para introduzir uma nova forma de exprimir o sagrado em O Evangelho Segundo Mateus, quatro anos mais tarde, em 1968} John Cassavetes propõe uma cinematografia dos corpos para revelar uma consciencialização do mundo através da expressão de emoções "puras", isto é, tornar visível os movimentos internos do homem. No capítulo "Cinema, corpo e cérebro, pensamento" do Imagem-Tempo,Gilles Deleuze diz:



«É a grandeza da obra de Cassavetes ter alterado a história, a intriga ou a acção, mas mesmo o espaço, para atingir as atitudes como as categorias que põem o tempo no corpo, assim como o pensamento na vida. Quando Cassavetes diz que as personagens não têm de vir da história ou da intriga, mas a história ser segregada pelas personagens, ele resume a exigência de um cinema dos corpos: a personagem é reduzida às suas próprias atitudes corporais, e o que tem que sair é o gestus, isto é, um "espectáculo", uma teatralização ou uma dramatização que vale para qualquer intriga. Faces constrói-se nas atitudes do corpo apresentadas como rostos indo até à careta, exprimindo a expectativa, o cansaço, a vertigem, a depressão».

Em Faces,a utilização do grande plano permite novamente a expressão do invisível, do espiritual imanente ao homem, mas a câmara autonomizou-se em relação ao grande plano de Dreyer: já não serve para enquadrar o objeto, mas parece estar à procura dele (do rosto) na densidade do real. É na interioridade dos rostos que se encontra o sagrado, na sua busca de sentido no espaço cinematográfico da vida; a câmara tenta acompanhar os seus movimentos imprevisíveis, chamando por uma resposta no incomensurável caos das relações humanas. Em Faces,o movimento contínuo dos corpos perante uma câmara invasiva e instável provoca uma relação de imersão entre o espetador e a imagem. Os corpos parecem resistir à câmara, e ela está à procura deles; essas forças contrárias (entre a ótica e o real) criam um desfasamento, uma dessincronização entre a imagem e o seu assunto, que reforça a experiência do sagrado através da expressão emocional das personagens.

Os jogos de luz permitem aos rostos encontrarem a sua verdadeira interioridade: ao atravessarem o claro-escuro no enquadramento, eles desvendam a essência paradoxal da existência humana, revelando inveja, desejo, ou um vazio existencial incontornável. O sagrado está presente no silêncio da imagem que mostra uma resistência dos corpos ao encontrar um mundo que não entende nem controla, prontos para se entregarem à vida mas retidos pela complexidade das forças emocionais da natureza humana. É nos rostos que resistem ao espaço da câmara que se encontra a origem da revelação do Sagrado, despojado de sentido religioso mas profundamente humanista.



Filmar a origem

O grande plano pode também ser utilizado para criar uma sensação de "estranheza inquietante", para chegar ao sagrado, no meio da transgressão, a partir do olhar proibido (o sagrado induz também a questão do interdito).


Encontra-se uma forma de deslocação do sagrado no cinema de Bruno Dumont, que procura «um sagrado humanista, uma vida espiritual, uma transcendência, sem Deus e sem Igreja».Sendo ateu, ele afirma que Deus só lhe interessa na sua forma poética. No entanto o cineasta menciona o desejo e a necessidade de recuperar noções como a graça, a santidade e sobretudo a "metafísica da mística" e daí se falar de antropologia profana e teológica na sua obra.

Em L'Humanité, Bruno Dumont utiliza os corpos da suas personagens para exprimir o invisível (a origem) através da representação do mistério da humanidade, confrontada com o mal e o seu desejo de o transcender. Faraó, o protagonista, figura crística de amor, inocência e compaixão, depara-se com um corpo feminino abandonado no campo. Dumont inspirou-se da instalação Étant donnés de Marcel Duchamp, para tornar o olhar escópico do espetador numa experiência real. Mais à frente, é a partir da referência clara e assumida da "Origem do Mundo" de Gustave Courbet, que Dumont propõe uma definição icónica do sagrado na sua transgressão (não se deve mostrar o que é privado e profundamente íntimo) e profanação (o grande plano invade e exibe a intimidade visualmente proibida tornando-a obscena).

No princípio do filme, após a sua horrível descoberta, Faraó caí na terra húmida de um campo gradado e Dumont faz um grande plano do seu rosto com os olhos abertos e fixos como se estivesse morto. Essa imagem representa a sua incapacidade de lidar com uma situação que o transcende (o horrível crime de uma menina) e o desejo de retorno à origem-mãe, a terra. Numa leitura bíblica podia-se acrescentar que é o desejo do retorno ao paraíso, antes da queda da humanidade e da sua exposição ao mal. Houve-se o mundo através do vento e do canto dos pássaros.

Bruno Dumont mostra ainda vários planos de pormenor do corpo das várias personagens para as transfigurar (a imagem crua das dobras sujas e suadas do pescoço obeso do comissário é particularmente expressiva na sua banalidade). O plano de pormenor isola um fragmento do objeto da sua totalidade e do seu contexto; o resultado é a imagem puramente ótica de um detalhe (não é visível ao olho nu} a sua proximidade levando a uma inevitável percepção desfocada) que encontra uma nova configuração. O fragmento corporal transfigura-se e, ao separar-se do resto} desperta uma sensação de profundo desconforto no espetador, que através do seu olhar é obrigado a profanar o sagrado.

Bruno Dumont mostra que o sagrado encontra-se na origem do ser humano e se manifesta quando a experiência de existir se torna mais densa. O cineasta procura o sagrado no homem, e para o exprimir serve-se do real para incluir o fictício, ou a experiência do transcendente. É na tensão que existe entre eles que se manifesta o sagrado. Será por exemplo a dissonância entre o som da natureza e o rosto sobrenatural de Faraó enfiado na terra; ou é o alongamento do tempo que as personagens levam a reagir que cria um "desajuste" estético na imagem.

Se o cinema sempre se interessou em representar o sagrado, é na sua forma menos ilustrativa que melhor o conseguiu, sendo a experiência do sagrado uma experiência "superior" à realidade ou que procura ultrapassar a experiência do dia-a-dia. No entanto é a partir da realidade que o sagrado se encontra e o cinema com os seus meios formais, vai questionar o mundo e a condição humana. O sagrado exprime-se através do encontro entre várias forças que criam uma tensão visual ou sonora, positiva ou negativa, espacial ou temporal.

A originalidade do cinema é de poder exprimir o sagrado a partir da imagem do real e do mundo interior do homem, utilizando o grande plano, o movimento da câmara ou outros meios técnicos que conseguem tornar visível o invisível, para o tornar imediato e presente na experiência do espetador.


Inês Gil, Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura