a boa vida#2



Quando os homens da lei tomaram os morros do Complexo do Alemão, no Rio, e expuseram aos olhos da multidão cá embaixo como os bandidos vivem lá em cima, algumas coisas chamaram a atenção: a falta de resistência, a Bandeira Nacional tremulando como símbolo de conquista e, principalmente, a morada dos traficantes. Polegar se amoitava em três andares, com sancas de gesso iluminadas, piso ladrilhado, TVs de plasma e até piscina na cobertura (ali, mais conhecida como laje). Pezão tinha ar-condicionado e mandara pintar na parede um retrato do astro teen Justin Bieber. Gão possuía área de churrasco e chafariz em forma de golfinho esguichando água para dentro da piscina com um "G" desenhado no azulejo.


Não demorou um nada para batizarem os mocós do crime de "mansões" e "imóveis de luxo" com "vista privilegiada". Um erro, senão um preconceito que já nem nos damos conta, avalia a antropóloga Mariana Cavalcanti, professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. "Não há motivo para tanta surpresa. Os traficantes são socializados na cultura do consumo, como todos nós", diz Mariana, que é doutora pela Universidade de Chicago e se dedica a pesquisar espaço urbano e moradia, em particular na história e no cotidiano das favelas cariocas. Suas palavras a seguir mostram que, morro acima, termos como "tragédia" e "ofensa" vão muito além de sua mera ligação com "pobreza" e "tráfico".


Nome aos bois
"Mansão e imóvel de luxo não são termos adequados para descrever as casas dos traficantes. O que define uma mansão? É o espaço? A localização? O valor de mercado? Sob nenhum desses critérios aquelas casas podem ser consideradas 'de luxo'. Não entendo a surpresa das pessoas com as banheiras de hidromassagem, as piscinas, as TVs, o quadro do artista pop juvenil na parede encontrados ali. Ora, são os valores da nossa sociedade, do capitalismo, que os tornam objetos de desejo. Os traficantes são socializados nessa cultura do consumo, como todos nós. A opção pelo tráfico também se dá pelo status (ser temido, reconhecido e assim por diante), mas se dá primordialmente pela possibilidade de ter bens de consumo. Então por que a surpresa? As pessoas, em particular a classe média da zona sul e da Barra, ficam incomodadas com a pouca nitidez da diferença entre 'nós' e 'eles', com o compartilhamento do imaginário de consumo. Entrar no mundo opaco da favela e encontrar um espelho das suas aspirações parece desestabilizar a certeza tão consolidada e cultivada de que os traficantes em particular e os moradores de favelas em geral são 'os outros'.


Nem tudo é barraco
"Achar que morador de favela vive em barraco é uma ideia datada. Historicamente, os migrantes chegavam aos morros e, de fato, alugavam um barraco de madeira, de um cômodo, que era melhorado ao longo dos anos. Como disse um morador uma vez, casa na favela nunca fica pronta. Mas, hoje, há muitas casas acabadas por dentro e por fora, decoradas com capricho, com uma série de preocupações estéticas e afetivas que refletem investimentos materiais e subjetivos. Ainda há os blocos aparentes e a falta de reboco, mas, na última década, vi pouco chão batido. A maioria tem piso. Claro que os pobres ainda vivem em condições precárias, há toda sorte de problemas arquitetônicos, a circulação de ar, a entrada de luz e outros aspectos básicos ainda deixam a desejar. Contudo, a tendência é que essas casas se tornem cada vez mais parecidas, em termos de acabamento, com as da cidade dita formal. A metamorfose de um barraco em uma casa não apenas transforma a forma e a qualidade da moradia. É uma transformação que abre a promessa de um futuro melhor - em parte, devido à própria experiência de acúmulo de capital na forma de uma casa que participa de um mercado imobiliário dinâmico, ainda que limitado pelos traficantes e pelos estereótipos relacionados à favela.


Disfarce
"A mídia noticiou que é possível que alguns traficantes tenham fugido ‘disfarçados de moradores’. Isso é uma ofensa inenarrável aos moradores e reafirma estereótipos terríveis relacionados a raça, classe e lugar de moradia. No asfalto nós sabemos diferenciar o cidadão que paga imposto do que sonega? O honesto do corrupto, ou do que pratica violência doméstica? Então, por que no morro os traficantes, moradores locais que são, seriam identificados tão facilmente? Além disso, essa ideia tende a reforçar outra, essa sim mais perversa, que é a velha ladainha de que os moradores de favela são coniventes com o tráfico. A quantidade de ligações ao disque-denúncia faz esse estereótipo cair por terra. E é bom que o faça, pois, assim como classificar os acontecimentos recentes de ‘guerra’, a ideia de que os moradores são coniventes tende a legitimar incursões policiais truculentas e a sedimentar os preconceitos de quem associa pobre a bandido. Nos anos 80 e 90 o tráfico era uma atividade muito mais lucrativa do que é hoje. E menos institucionalizada, também. Os chefes eram crias da favela e mantinham relações de respeito com os moradores - coisa que os jovens que os sucederam já não mantêm. Os moradores tinham menos oportunidades de ascensão social naquela época, ou seja, a desigualdade entre o traficante e o morador comum diminuiu, seja porque o tráfico se tornou menos lucrativo, seja porque os moradores passaram a ter mais poder aquisitivo e mais oportunidades de formação e qualificação profissional.


Notais fiscais
"O episódio da moradora que voltou para casa e soube que a sua TV LCD, ganha num sorteio, tinha sido metralhada por um policial, mesmo ela tendo deixado à vista a nota fiscal do aparelho, é simplesmente trágico. Porém, não surpreende. Perdi a conta de quantas vezes, nas minhas pesquisas, entrei na casa das pessoas e elas faziam questão de me mostrar as notas fiscais dos eletrodomésticos que tinham a sua volta. Os recibos ficavam sempre à mão, para que fossem facilmente localizáveis na hora em que a polícia chegasse. Esse fato é sintomático da relação difícil e recheada de desconfianças que, infelizmente, não são infundadas. Claro que nem todo policial é ladrão de eletrodoméstico de trabalhador, mas também não podemos afirmar que não há precedentes para esses cuidados dos moradores.


Mágico de Oz
"Já as crianças se banhando na piscina dos traficantes é a imagem mais comovente de todo o evento. Nela, sim, há uma vitalidade que poderia ser descrita em termos de uma possível libertação - ainda que por uma tarde na piscina. Lembra quando a bruxa morre em O Mágico de Oz? Todos cantam e dançam alegremente? Está um calor absurdo no Rio, e não existem clubes para esses meninos no Complexo do Alemão. Mas me incomoda que essa imagem bonita seja usada para cantar a vitória da ocupação. Os desafios ainda são muitos, as denúncias de violações de direitos humanos aumentam a cada dia, ainda há muitos traficantes soltos, outras facções, as milícias... A vitória cantada antecipadamente e a metáfora da guerra são nocivas. Tiram a atenção dos inúmeros desafios que são urgentes ali e no resto da cidade."


[Um espelho no morro, Christian Carvalho Cruz, in O Estado de São Paulo, 5.12.2010]