4’33’’ à espera de godot, não mais que isso


[Casa Dogon, Mali]


Responde-se a si mesma, essa longa marcha lenga-lenga que prossegues - e estás bem acompanhado por toda a tradição moderna e pós-moderna, diga-se: a auto-proclamada vitória final da razão e da mecânica funcionalista, genericamente, o pensamento que guia ainda a produção arquitectónica, e a tábua rasa. E é nessa exacta linha, do confronto com os limites da razão e com o método positivista, onde se levantam as maiores perplexidades dessa vontade revolucionária. Até porque a História que nos é contada diverge dos factos, valendo-se da percepção induzida às massas por aquilo que alguém chamou da semicultura destas amplas democracias. Bem entendido, recusa-se aqui um regresso ao passado trágico das multidões ignaras a trabalhar de sol a sol para senhores ou pela escassa sobrevivência. Mas andaremos assim tão distantes da indigência quanto a hiper-modernidade nos faz crer?

E é o outro passado, o edénico, obstinado em surgir em todas as reflexões de todos os que se propõem desocultar um sentido para a prática da construção mais que construção. Tome a forma de especulação erudita ou de devaneio ensandecido, de Vitrúvio a Le Corbusier, averiguar a natureza da cabana primitiva ocupou os espíritos mais agudos do ofício, e nem todos com a fineza de um Proust. E não é inocente a travagem repentina desta marcha em Le Corbusier, a acreditar que a História é uma marcha imparável.
A razão que nos governa com determinação desde Newton tem proporcionado à espécie magníficos avanços técnicos e materiais mas não tem caucionado respostas satisfatórias a ansiedades mais profundas. E não é lirismo nem superstição dizer-se que as questões que se levantarão a Koolhaas ao adormecer serão, provavelmente, as mesmas pelas quais Vitrúvio terá passado noites em claro. Exactamente as mesmas que deram origem ao mito, à religião, à filosofia, à arte. E aqui ainda andamos perplexos. As mesmas por que se queimam tantos cigarros.
Esqueça-se o ambiente sócio-histórico de cada um dos estilos, esqueçam-se as disputas e as querelles, se vem primeiro a ideia se primeiro a forma, se a madeira se a pedra, se a pirâmide se a caverna e as belas prosas que nos chegaram, sabemos que um estilo é uma paciente elaboração da teia de relações que articula o homem com o que o rodeia. Sim, o cosmos, e não apenas o contextualismo (crítico), que permite ao Homem situar-se num Universo desconhecido. A ciência tem-nos trazido notícias, quase diárias, do recuo do desconhecimento, mas ela própria sente-se incapaz de verificar as causas primeiras, mesmo com todo o dispositivo tecnológico à disposição.

Recorro à noção de abrigo, ou antes, a um possível significado de abrigo, que poderá, por hipótese transcender cada um de nós para se situar no plano simbólico e de facto, da manutenção da espécie: no abrigo descansamos, preparamos o alimento, procriamos. E tendo a achar que o significado do abrigo e da arquitectura se atravessa neste plano, do símbolo e do mistério existencial, mais largo que a boutade da máquina de habitar. E ainda que a máquina de habitar tenha produzido belas obras, e ainda que possamos, num esforço hermenêutico que contrarie o cerne do aforisma e da intenção do autor, atribuir uma função simbólica que se evidencie também no form follows function, a realidade é que o abrigo produzido sob a estrita prescrição do funcionalismo pura e simplesmente foi recusado pela ansiedade com que se estende a vida perante outras realidades mais largas que o trivial quotidiano. O exemplos são muitos e um deles é a própria Ville Savoye, logo abandonada pelos donos aos animais e transformada em estábulo para ressuscitar, após a II Guerra como casa-museu. Não valerá a pena aprofundar muito sobre a Casa Farnsworth e o penoso processo que opôs a cliente (e amiga) de Mies ao arquitecto de uma casa que o não chegou a ser. Serão experiências radicais e necessárias. Assinalam uma época, qualquer que seja, mas trazem mais de provocação que de conclusão, evidentemente.

O abrigo, e a arquitectura como primeiro abrigo, (certo, somos pós-freudianos, sabemos do líquido amniótico), convoca o arquitecto à exigência de pensar, em projecto, em todas as relações que transcendem o indivíduo e a praticabilidade quotidiana da arquitectura. São essas relações que, mais ou menos evidentes, mais ou menos mensuráveis (intuição?), apelam incessantemente à procura da origem (do princípio e da causa). Relações que o racionalismo não poderia responder.

(Mas mais, o racionalismo, ao eliminá-lo, ainda levanta o problema estético.)

Mas concordo que visto dessa maneira apresentes um panorama retroactivo do fim da História. Temo que ela ainda não tenha terminado. Esta arrogância da razão são 4’33’’ à espera de Godot. Não mais que isso.


adenda: Qualquer coisa como isso.