imitação da vida


[Sangue do meu sangue, João Canijo, 2011]



Por hipótese, se o genérico final de Sangue do meu sangue fosse o da abertura do filme – embora parecesse mais adequado à possibilidade urbana lisboeta que o filme representa o uso da música de Toni Carreira do que um sucedâneo português do gangsta rap -, talvez se cingissem, por contaminação, as múltiplas leituras que o filme oferece a uma ligeira sociologia de pacotilha. A que nos diz, por métodos irrepreensivelmente pós-estruturalistas, que da má cidade procedem, inexoravelmente, maus cidadãos e infames seres humanos. Porque não é, apesar de tudo, o problema da cidade que está aqui em causa, mas mais o da possibilidade de em qualquer que seja a condição urbana, habitacional, ou familiar, a vida prosseguir com toda a dignidade que cada cidadão tem direito (e dever).
Telmo, o traficante cobarde, por acaso ocupa uma das habitações socias do Bairro Padre Cruz – não por acaso, cenário do mais monstruoso momento da narrativa, a fazer lembrar o mais cruel dos Pasolinis, mais que Ettore Scola -, enquanto que na casa da família Fialho, precária e construida pela possibilidade, existem as sequências de maior ternura e amor. Nada disto refuta o que acima se cita sobre o determinismo sociológico, mas o inverso é também verdade. E se os escassos minutos do genérico final apavoram pela catástrofe urbana dos últimos 37 anos, todos os anteriores 135’ nos dizem ser isso o que menos importa.

Há, então, muitas Lisboas. E a confirmação do truísmo de que existem tantas Lisboas como lisboetas: a extemporânea incursão de Márcia, que mora e trabalha no Bairro Padre Cruz, ao café trendy do centro da cidade – onde se apresentam os “estilos de vida alternativos”, “plurais”, numa algo demagógica sequência de duas mulheres a beijarem-se –; a da moradia de Beto, vindo do Bairro e hoje médico “com posição” – exemplo de mobilidade social, e de hipocrisia(?) -, curiosamente quase sempre filmada pela janela horizontal corbusiana, aqui revista à luz do asséptico cânone Wallpaper; o labiríntico bairro africano, de luz e sombra, de interdito, do rígidos códigos de acesso, de esconderijos. Mas é sempre a fragilidade do que nos une uns ao outros o que aqui está em jogo.

A representação cinematográfica do espaço é prodigiosa. Se a maior parte da acção decorre no interior da casa onde Márcia habita com os filhos e a irmã, onde a câmara não tem espaço de recuo, onde todos os planos são apertados, onde o som da gritaria da velha da casa ao lado se sobrepõe à televisão ligada, alto volume, na novela ou na bola, onde estas se sobrepõem às conversas entre os membros da família, onde as conversas se cruzam em absurda cacofonia que impede a intimidade e o imprenscindível espaço ao segredo e à respiração de cada um, (e a bonança sonora só ocorre quando Toni Carreira canta e ampara suavemente todas as angústias da casa); a casa moderna, generosa nas dimensões, mas que isola e aparta cada um dos seus habitantes; o apartamento providenciado pelos serviços sociais do Estado, obscurecido pelos estores de plástico corridos, sede da remediada rede de tráfico de droga.

É, com certeza, um filme moralista. E só o consegue ser porque reconhece dignidade em todas as formas de vida, das possíveis às resignadas, das reflectidas às que vão inconscientes ao sabor dos tempos, das voluntárias e voluntaristas, às criminosas, sem fazer uso dos clichets dos pós-modernos departamentos de ciências socias entre a Av. de Berna e a Cidade Universitária.
A defesa intransigente de quem se ama e da família – mas arrisco que o realizador não tenha arriscado esta palavra. Mais que as arquitecturas, o que dentro delas fazemos. Formas possíveis do habitar que são, sempre, as formas possíveis de ser.



Ao acaso, imediatamente antes, Life during wartime (2009), de Todd Solondz, sequela de Happiness (1998), num contexto radicalmente diferente do sul da Florida, dos prósperos reformados, da classe média americana em fuga, dos condomínios de palmeiras implantadas e estacionementos assegurados, das donas de casa desesperadas, do ressentimento, da auto-segregação - de que temos também sucedâneos na periferia de Lisboa - debatia exactamente essa possilidade de que nem só de casas e lugares se fazem os homens. Muito pelo contrário.