[Filz TV, Joseph Beuys, 1970]
i.
[Angelus, Jean-François Millet, 1857] Quando eu estudava História nos anos de 1960 e 1970, a Reacção não vinha nos livros que eu lia: era um movimento político e cultural anacrónico que representava o passado clerical e aristocrático que a burguesia e o capitalismo tinham varrido da Europa. Curiosamente foi por via da minha especialização em história da arte que a Reacção começou a interessar-me. Apesar da implacável censura da ortodoxia modernista que dominava a academia no campo da história da arte e apagava toda a informação que não fosse conforme à ideia do progresso das artes, fui percebendo que afinal as vanguardas não eram o único movimento artístico existente nos tempos contemporâneos. Recordo um trabalho académico que me levou a descobrir, muito surpreendido, que existiram em Portugal dezenas de artistas que, pintando paisagem, assuntos sacros ou retrato, não respeitavam o cânone da vanguarda inaugurada pelos impressionistas e Cézanne. Todos estes artistas tinham desaparecido da história - e continuam ainda hoje em parte incerta. Cruzei-me nessa altura com o famoso quadro Angelus (1857) do pintor francês Jean-François Millet, uma das pinturas com maior influência sobre o gosto popular em toda a história da arte contemporânea. Envolvidos pela luz dourada do pôr do sol nos campos planos e tristes do Norte, um homem e uma mulher interrompem o trabalho agrícola e recolhem-se em oração quando toca o Angelus que adivinhamos porvir dos sinos de uma igreja que se vê ao longe. Recordei aquilo que já tinha esquecido: três vezes por dia, ao nascer do sol, ao meio-dia e ao entardecer, os sinos das igrejas levavam as pessoas a deter-se para rezar uma Avé-Maria, a outra designação que se dá à prece do Angelus. No preciso momento em que escrevo isto, ouço ao longe o sino da igreja da aldeia: são seis da tarde. Ao princípio, achei o quadro num pouco kitsch, não me surpreendendo portanto o seu sucesso popular. Mas pouco a pouco, ao longo dos anos e das leituras, percebi-lhe o contexto: a Europa do século XIX e do início do século XX não foi apenas a Europa da burguesia, do capitalismo, do proletariado. Foi também a Europa reaccionária, na qual ocorreu um poderoso movimento de reafirmação religiosa dirigido por cristãos de várias denominações e expresso em várias escolas de Arte e Arquitectura sacra (que só hoje começam a merecer alguma atenção académica). O quadro de Millet integra-se nesse ambiente, representando a vida ritmada pelo tempo antigo ligado ao movimento do dia e às estações do ano, um tempo ecológico que o cristianismo implantou na Europa, e que estava então a ser substituído aceleradamente pelo tempo "dos mercadores", como escrevia Jacques le Goff no seguimento de Marx, o tempo fabril e comercial do relógio e do capitalismo. Millet pintou o seu Angelus num gosto e com uma cultura que desaparecem da nossa memória, à medida que deixamos de ouvir o som antigo dos sinos, que só aos velhos faz hoje semicerrar os olhos, baixar a fronte e suspender por um instante o vazio do tempo. [Angelus, Paulo Varela Gomes, Público, 26.11.2011] [Angelus, Salvador Dalí, 1935] |
No sphere of high culture is implicated in the fall of the affluent society in the same way art is. Yesterday I commented on the resistance to melancholy, the flight from reality, that enabled art in our time to promote the fantasy of an unlimited market. Some have called the system that has now fallen "offshore capitalism"; perhaps another description is "post-modern capitalism". In post-modern capitalism, secondary markets created a counter-reality that was unfettered by production. The economy was run like a theme park. It's obvious how deeply involved in that daydream was the art of the last 20 years, which so gleefully rejected anything that might tie it to the slow, patient, tedious stuff of real creativity.
Drama, the novel, even cinema have all kept a safer distance from the booming monster of modern capitalism than artists did. What I want to ask now is – why? What happened? How did art become the mirror of fraud? It is not a story that starts with Damien Hirst's diamond skull but one that goes back to the very origins of the consumer society. After the second world war artists were steeped in history and introspection. Art has never been more serious in its view of life than it was in the era of Mark Rothko and Francis Bacon. But even as modern painting reached such heights and depths, western society was going through an epochal transformation. The power of the capitalist economies in the postwar era was unprecedented in world history. An entirely new lifestyle, that of "consumerism", was born. Consumerism instantly inspired artists. Pop art in America and Britain took the surfaces of objects, the instant appearances of the new bright world, as its subject matter. Everywhere, emotional depth in art was censored. Abstract Expressionism had to die. Art could teach people to look at the world in a new way: to embrace the cool. Pop art taught everyone to enjoy money and the mass media and 1980s post-modernism taught the same lesson again. These emotional styles have long since been so popularised that even intelligent people accept that reality television is a form of culture and celebrities fit receptacles for our ephemeral floods of feeling. All the shallowness of modern mass culture began in avant-garde art 40 years ago. We're Warhol's ugly brood. Art has even fed the unsustainable appetites that are destroying the planet by constantly telling everyone cities are better than the countryside, culture more real than nature. It has become the enemy of truth, the murderer of decency. The modern world has screwed itself and art led the way. [How art killed our culture, Jonhatan Jones, The Guardian, 6.3.2009] [Piss Christ, Andres Serrano, 1987] |
ii.
Imersos nesta tecnologia opinativa, não temos tempo para nos confrontarmos connosco mesmos. Do alto da auto-indulgente e presuntiva coerência – esse valor monolítico – vamos derramando pelas redes sociais em geral e pelo mundo em particular as nossas visões. Se a crise é, etimologicamente, transição, é a melhor ocasião para que redobremos a atenção sobre nós mesmos. Não nos tomemos muito a sério. Vigilância sobre nós e deixar o mundo passar um pouco mais ao largo. Podemos começar por ler e rememorar tudo o que dissémos, escrevemos e pensámos, sobre o estado das coisas ao longo dos últimos meses. Três ou quatro bastam. O suficiente para conseguirmos, com necessária auto-ironia, soltar uma sonora gargalhada sobre a nossa presunção. E para ter a exacta consciência da nossa ignorância e perplexidade sobre o que se está a passar. O ego não sofrerá pela via do riso. Falo por mim. iii. |
[Paris, Texas, Wim Wenders, 1984]