pour épater la bourgeoisie


[THX1138, George Lucas, 1971]



Caro Pedro,
O meu comentário ao seu post assenta numa divergência e numa perturbação.
Será irrelevante para o caso o cansaço que advém a uma pobre alma conservadora-liberal essa propaganda do terror que toda a intelligentsia espalhou por estes dias. O famoso ‘medo do que aí vem’. Também porque não tiveram ‘medo do que aí foi’, durante seis anos de delinquência política (e outras),também  porque a complacência, quando não conluio, com os desmandos de um governo de esquerda foi olímpica. Uma perturbação que se confirma ao percorrer o debate público, a blogosfera, ao verificar o cinismo em que todos, mas todos, estamos mergulhados. Por isso celebrei, celebro, celebrarei, a queda de um primeiro-ministro que escandalosa e vertiginosamente se dedicou a corroer as formas da democracia liberal e representativa.  Uma perturbação, apenas.

Serei ignorante, muito ignorante, mas divergência não será necessariamente desconhecimento e insensibilidade. Muito menos emprenhar pelos ouvidos dos que fazem o ‘jornalismo’ dos Públicos, dos Expressos, das RTPs e dos DNs que se calhar consumo, ou, quiçá, académicos, legitimados pela universidade liberal, pagos e alimentados por ela, mas sempre prontos ao maior e alucinante foguetório conceptual, que deslumbra os mais inermes, mas sem qualquer adesão à realidade, que se calhar também consumo.


Vamos, então, ao que importa. A realidade com horizonte no real e não na utopia. Com o desejo de transformação do real com os materiais, contraditórios e caóticos que esse real nos fornece, e não com qualquer devaneio sentimental.
E o que importa começará pela divergência que aludo acima: para o Pedro, presumo, a democracia liberal e representativa será um obstáculo a remover em direcção ao paraíso terrestre. Muito embora creia em paraísos - eles são de outra substância que não deste mundo – as experiências trágicas do passado recente da civilização levam-me a recusar qualquer utopia. A utopia não é mais que o desprezo profundo pelo homem e a sua condição. É a incapacidade de aceitar o homem e a sua falibilidade, o erro e o acerto a que sempre e em toda a nossa actividade estamos sujeitos. E se hoje a utopia dominante é a do capital, há poucos anos foi a da igualdade a ferro e fogo. As duas com consequências, naturalmente, sobre a paisagem, porque ambas configuram um projecto totalitário com domínio de tudo o que diga respeito ao humano.

Mas a paisagem do capital.
Apenas um cego surdo mudo, ou um cínico, poderá passar impávido sobre tudo o que estamos a passar. Todas as transformações que organizam e desorganizam o mundo em que vivemos.
O mundo não é flat – o chato na tradução brasileira parece-me muito mais interessante que o geométrico plano da tradução portuguesa – apenas o é nos cálculos dos especuladores, como o foi em todo o projecto racionalista e progressista. E estaremos de acordo. O mundo é muito mais interessante que o plano sem fim. Muito mais imprevisível e surpreendente.
A expansão planetária do capital é isso mesmo, planetária. E se há dez ou vinte anos poderíamos voltar os olhos ao Ocidente – como dois aviões se voltaram para duas torres na paisagem de Manhattan -  hoje os olhos permanecem  ansiosos, instáveis, alvoraçados porque porque, sabemos, o planeta é esférico e os nossos olhos não alcançam o outro lado que sabemos existir.  O capital não escolhe territórios nem regiões, ocupa-se a ocupar o espaço que lhe permitem. Que a política lhe permite. A falência da política.
O poder legitimado pela fonte popular, sitiado pelos poderes fácticos.  O actual enquadramento económico global não é escrutinado por nenhuma organização supra-nacional, quando os estados se mostram incapazes de contrariar o anonimato e a velocidade do capital pouco interessado no bem comum.
A pequena agricultura da África, a subsistência de centenas de comunidades, estará esvaída. E pense-se na PAC. O conforto europeu, por exemplo, e a prosperidade dos sindicalistas franceses e as folclóricas peregrinações de Boaventura Sousa Santos aos Fórum Internacional de Porto Alegre em gongóricos ditirambos alter-mundistas, e o preço em sangue, doença, morte, pago no continente africano. Pense-se nas patricinhas & mauricinhos do Leblon, escandalizados com a violência do Rio mas nem por isso menos viciados na maconha que alimenta os circuitos do tráfico e da violência no morro. Pense-se no agro-business que leva korn-flakes ao pequeno-almoço de cada vez mais quantidades de gente em todo o planeta, mas também dizima milhares de hectares em todo o mundo com monoculturas intensivas. Talvez falte em tudo isto globalização e não o seu contrário. E globalização pressupõe, pressuporá, regras iguais a todos. Mas a falência da política. Como conciliar a melhor distribuição da riqueza proporcionada pelo mercado livre com a justiça e equidade sociais? Como conciliar a vontade individual, cada vez mais avessa a grilhões com a vontade colectiva com a qual muitas vezes violentamente choca. Como, afinal, fortalecer a democracia liberal? (A minha ignorância e incertezas não me dão respostas a isto.)

Recuso é a visão do mundo de Tordesilhas: de um lado socialistas, plenos de boas intenções e dignidades para todos, do outro, capitalistas, venais senhores dos mais tenebrosos desígnios. Recuso o monopólio do coração e da sensibilidade a que, implicitamente, no seu texto o Pedro se alcandora.
Nestes termos, estaríamos a debater a realidade com categorias oitocentistas
épater la bourgeoisie revolucionária. Seria demasiado fácil e manso. E o mundo é muito maior e complexo e contraditório.