água rasa























[Pinturas e Platibandas, Anna Mariani, 2010]



O que dizem essas casas? Sob o sol-a-todo-sol do Nordeste Brasileiro, em meio à dura vida humana, o que insinua sua lírica geometria?


De frente para a câmera de Anna Mariani, elas parecem esboçar um sorriso silencioso. A câmera não pretende interpretar os seus signos, mas entrar numa espécie de estado amoroso com a delicadeza de sua poesia. As fotografias são como monalisas pintadas por Volpi.


Para mim, são coisas íntimas. Casas que conheço por dentro. Em Santo Amaro, onde nasci, no Recôncavo baiano, as pessoas pintam suas casas a cada fevereiro para as festas da padroeira: é como comprar um vestido novo. A cidade fica endomingada, como se fosse um cenário de teatro ingênuo, com todas as casas recém-pintadas. É simples: é a alegria de viver, a vontade de ser mais bonito. Aos olhos do próximo, aos olhos de Deus.


É complicado: vendo essas casas reduzidas à sua "essência" formal, em retratos frontais, sobretudo aquelas que Anna foi encontrar longe da minha microrregião, no sertão, onde exibem mais inspiração e rigor, eu me pergunto qual o caráter do ensinamento que elas trazem. O impacto estético que produzem em nós sem dúvida confirma e ultrapassa o sentido de superação da miséria. Os homens que desenvolveram esse estilo visual numa região tão pobre do Brasil nos fazem ver que há muitos níveis insondados, muitos estágios misteriosos nas relações entre as massas e o que se convencionou chamar de modernidade.


[Caetano Veloso, para o catálogo da exposição Des maisons comme des tableaux, Centre Georges Pompidou, 1988]








Regresso a Pinturas e Platibandas, agora com o livro nas mãos, de cuidadíssima edição do Instituto Moreira Salles. E regresso à sensibilidade e amor com que Ana Mariani fotografou e recolheu, entre 1976 e 1995, imagens de habitações populares do Nordeste Brasileiro. O levantamento é conduzido por uma sensibilidade que transforma as pequenas habitações das duras condições de vida nordestina em pedaços de poesia, em minuciosas peças de câmara, no meio do desconcerto sinfónico do Sertão.
Uma plástica elementar: erguida em base de cal; a profusão cromática sobre a geometria simples das casas e das platibandas; o conhecimento e sageza dos métodos construtivos tradicionais; a sabedoria e inteligência ancestrais e arcaicas no modo de apropriação e transformação do que o mundo nos vai dando.
A tecnologia das mãos sobre o barro escasso: pintar uma casa, uma cidade, a vida.


E a porta da casa dela
Nem parecia uma porta
Tinha uma luz azulada
Que vinha de nenhum lugar


[Retirante, Vinícius Cantuária & Laurie Anderson, 1999]