abismos#2





[Hefei, China, 21.05.2011, in The Economist]



Os optimistas chamavam de visionários aos starchitects. Resgatadores do futuro, que promoveriam, pelas suas intervenções, vertiginosas performances económicas, sociais, culturais, nas cidades. Antecipando o futuro, uma espécie de mercado de futuros das cidades. Não por acaso foi o rebentamento do mercado de futuros, em que se transformou o mercado imobiliário, a origem da crise económica do Ocidente. Não por acaso, assistimos hoje à migração desses starchitects para latitudes emergentes, com tudo o que daí importa, desde a produção das imagens aceites como globais, à hegemonia de um pensamento sem qualquer contrapartida crítica. E neste mundo todos queremos construir ícones.
O ícone, o objecto de culto diante do qual se baixa os olhos, limite da correspondência da a imagem com o objecto, da representação com a presença (Régis Debray), ergue-se como arquitectura encerrada sobre si, desvinculada de qualquer lugar. Um erguer, mais que um constuir, também ele refém do aparato performativo tecnológico. Se de momento o dogma é o da sustentabilidade, equivocada, sem dúvida, e martelada pelos classificados e desdobráveis da promoção imobiliária, já foi o do progresso infindável. E se este é optimista, radicalmente optimista, o outro, é o do medo: do fim dos recursos, do fim do nosso padrão de vida, quando temos já a consciência quer da finitude dos recursos, quer da nossa capacidade de aniquilação da vida no planeta. Mas foi nesse projecto optimista, nesse projecto moderno, que era também o projecto de uma democracia universal, que a ruptura sucedeu. A imposição do projecto moderno é, em última análise, a universalização dos mitos românticos da originalidade, do génio, da novidade, da vontade. Talvez por isso seja a arquitectura “estrela” um campeonado de pilinhas tornitroantes.

A reacção pública à música contemporânea tem paralelos com a reacção do mesmo público à produção arquitectónica comtemporânea. A vox populi consagra o mamarracho. E à mesma vox populi, que consome e se consome em pastiches nostálgicos de uma civilização rural que nunca foi o paraíso que perdemos, respondem os arquitectos com a infundada e ignorante incompreensão das massas à evidência das arquitectura que constroem. O paradoxo da democracia, voltando aos parágrafos acima, é convocar, então, essas arquitectura incompreendidas para a sua auto-representação. O poder, presumivelmente representativo dos cidadãos, decide legar-se e celebrar-se na polis justamente pelas arquitecturas que estas, quotidianamente, rejeitam.

Torna-se evidente que a resposta reside nos lugares, por maior que seja o apelo e o desejo de um mundo encolhido e próximo. Globalização ou mundialização é apossibilidade de o mundo se tornar menos plano, mais aberto, de nos tornarmos mais recíprocos. Se a condição da arquitectura no lugar é a incessante relação destes, o nosso lugar hoje é maior porque o mundo encolheu. Admitindo que é das sensações que releva a experiência, é esta, paradoxal, e caótica, a nossa contemporânea.
The past is never dead. It's not even past. O tema faulkenriano torna precisa a necessidade de ter que lidar com o presente. E se algum do presente pode ser acusado com esta veemência reaccionária, admitindo que possamos fundir o conceito de presente com o de contemporaneidade, é porque a produção desse presente, de que todos somos responsáveis, é sem memória do que foi e sem desejo do que será.