Não tinha lama, não tinha fracasso, duvide quem não viu. Aquilo foi amor.









1. Amor não tem fracasso. Se foi fracasso, não tinha amor. Sábado à noite, Caetano Veloso subiu ao palco no Complexo do Alemão e então ficou na cara. A nossa cara a olhar a cara dele a olhar a nossa cara: 68 anos, já nem os caracóis grisalhos, já nem caracóis, um ancião - e quando sorri, um menino.


2. Um a um, tínhamo-nos juntado cinco no Cosme Velho, cariocas-a-prazo e quem-sabe-um-dia-cariocas, por acaso todos portugueses. Chovia como aqui chove no Verão, embora seja Outono, daqui a nada Inverno. Cinco da tarde já quase era escuro.


O anúncio do Favela Festival, inédito no género, dizia que a grande final começava com o desfile dos dez finalistas às três e terminava com Caetano Veloso às sete. Tudo isso acontecendo no Campo do Sargento, Complexo do Alemão, lá nos confins da Linha Vermelha, e depois da Linha Amarela, as vias rápidas do subúrbio.


Dias antes, um de nós, o João, ouvira uns rumores sobre umas carrinhas que iam partir da Zona Sul, género Expresso Caetano. Mas como não havia notícia delas, sábado de manhã liguei ao Otávio, livreiro-militante do Alemão, com quem eu passara uma tarde no morro. É agulha no palheiro, taxista da Zona Sul que aceite ir ao Complexo do Alemão, para mais de noite, e a chover. O Otávio devia ter algum vizinho da favela que aceitasse levar-nos aos cinco.


Tinha:


- Você vai ligar ao Anderson.


Liguei. Uma gentileza.


- "Tou com o carro na oficina, só vai estar pronto às quatro, mas o meu irmão vai ligar para você.


Portanto às cinco, hora marcada, o irmão do Anderson ainda não tinha ligado, o Anderson não atendia, o Otávio ia para a caixa de mensagens e nós cinco víamos a noite e a chuva pela minha janela.


O João e o André estavam como em casa, mas o Daniel e a Catarina tinham avião de volta no dia seguinte. Houve votos para uma picanha no Baixo Gávea, em vez de Caetano no Alemão. A aventura tremia.


Seria o fim?


Não, era o Rio de Janeiro.


Perto das seis o Otávio ressuscitou com notícias. Recém-saído da oficina, o Anderson, ele mesmo, vinha a caminho.


3. Cá vamos então no táxi do Anderson, que tem um boné e será pai dentro de dias. Um à frente, quatro atrás, tentem lá isto em Lisboa. Felizmente é sábado e o carro voa. Rua das Laranjeiras, Túnel Santa Bárbara, Catumbi, Sambódromo, um ápice. Linha Vermelha, Linha Amarela, a antiga fábrica onde se concentrou a tropa que invadiu o Alemão em Novembro. Foi o poder oficial a querer mostrar que afinal mandava no poder paralelo. O mundo viu.


Anderson só pára naquela barreira de metal como costuma haver nos concertos. Os faróis iluminam camuflados, os olhos habituam-se ao escuro. Dezenas de soldados nas esquinas, fuzil em riste. A barreira do Favela Festival afinal é um checkpoint. Não fosse tanto mulato a chinelar e seria Israel num campo de refugiados.


Avançamos a pé. Barraquinhas e churrasquinhos de um lado e do outro; o presépio da favela encosta acima; ao fundo da rua o festival, achamos nós.


4. Sete da tarde ao fundo da rua e o festival é um lamaçal deserto com um palco no lugar da baliza. Há carros da TV Globo e cartazes com os patrocínios da Petrobrás, do governo do Rio, da Cufa, a Central Única de Favelas, que organiza. Mas a galera da favela está na beiradinha do campo, braço cruzado, cara fechada, e escassa.


E à volta, centenas de soldados armados, mais um camião com reforços, mais um blindado ligeiro, como se fôssemos prisioneiros em dia de folga, vigiados de perto.


Um garoto distribui o programa: o tal desfile dos dez finalistas que era para começar às três e ainda não começou. Vamos a caminho das oito.


Podemos pensar que vai ser o maior fracasso da carreira de Caetano, mas isso de fracasso será para quem tem carreira. Caetano é deus e o diabo na terra do sol, terra em transe como nos filmes de Glauber Rocha a quem ainda na semana passada ele dedicou uma crónica. Não há como o Rio para deitar abaixo Caetano, porque ele fala do que não sabe, mete o pau em tudo, hoje direitos de autor, amanhã não sei o quê, o que eu tenho ouvido.


Mas eu não quero ouvir. Eu quero ouvir Caetano. E leio-o todo o domingo na página dois do Segundo Caderno do Globo e a questão não é se ele tem razão. Caetano é uma razão maior.


5. Dois litros de Antártica a dividir por cinco, mais linguiça na brasa, mais maçaroca quente, mais queijo no espeto, e Deus parou a chuva para quem acredita.


Às oito e meia estamos de pé na lama, encostados ao palco. O veterano DJ Marlboro, mestre de cerimónias do funk carioca, chama a dançar. Sobem ao palco três menorzinhos, gingam o baixo-ventre como quem já tem sexo. Depois uma negrona com a Nossa Senhora estampada nas pernas toma o micro e apela à galera da beiradinha: é botar o pé na lama mesmo.


Começa o desfile. Inclui um galã chamado Mar com a claque toda de t-shirt. Uma menina colorida do Sertão e um idoso metido a James Brown. Uma banda de Realengo a homenagear os estudantes assassinados em Realengo. Todos os finalistas vêm das favelas do Rio, cada um canta uma canção, entre cada há música de pacote, e a galera da beiradinha só dança essa música mesmo.


Meia-noite e meia e o maior sucesso do Favela Festival foram os intervalos.


6. É agora. Uma pequena multidão avança para o palco. Negras da favela talvez avós, gatos louros talvez da Zona Sul, amigos talvez namorados, olhos fixos no palco, no mesmo lugar. Então Caetano entra, de preto e vermelho e violão, e a noite muda.


Ao primeiro verso, tudo a cantar na lama, mas não se ouve o palco. Problema de som logo agora???


- Melhorou? - sorri Caetano.


Mãos no ar cá em baixo, acenando que mais ou menos.


Não vai melhorar muito, não. Ouvimos Caetano, porque estamos colados ao palco e somos poucos. Ouvimos Caetano, porque estamos a cantar com ele. Ouvimo-nos uns aos outros a cantar Caetano, e de vez em quando aquele vibrato que vem dele e paira, antes mesmo de ele sorrir.


Então Caetano Veloso está a cantar à uma da manhã nos subúrbios do Rio de Janeiro, para um campo cheio de lama semivazio, com um som abaixo de festa de liceu, e olhem lá as caras, a negra avó, o gato louro, os amigos talvez namorados, a galera da favela e a galera da Zona Sul, tudo de boca aberta e lágrima no olho, cantando de cor, pedindo mais.


- Estão pedindo Tieta ou Tigreza? - sorri Caetano, tranquilo e infalível como Bruce Lee.


- As duas! As duas!


Não tinha lama, não tinha fracasso, duvide quem não viu. Aquilo foi amor.





Caetano no Complexo do Alemão
, Alexandra Lucas Coelho, Público, 21.05.2011