Temos, assim, uma visão de que os edifícios são o projecto de arquitectura e o resto é secundário, ignorando que o dono de obra poderá não escolher a estética como único critério, tendo mesmo a obrigação de seleccionar projectos segundo outros critérios.
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Sei que é uma alteração profunda aos métodos que têm sido seguidos nos últimos anos, mas é tempo de acabar com a ditadura da estética, que parece ser, na lógica da arquitectura, o único critério para escolher os projectos, relegando para plano secundário os primeiros responsáveis pela segurança das construções e pela satisfação de um elevado número de exigências técnicas de interesse público.
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Se, por absurdo, a Ordem dos Engenheiros reclamasse a aplicação, aos projectos de engenharia, dos princípios que a Ordem dos Arquitectos defende, também teríamos concursos públicos para contratar projectos de estruturas, segundo critérios de segurança contra os sismos, seguindo-se a selecção dos melhores projectos em eficiência energética, redes de instalações eléctricas e de comunicações, acústica e outras importantes áreas de engenharia.
Fernando Santo, Ex-Bastonário da Ordem dos Engenheiros in Publico, 12.04.2010
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Da contra-argumentação processual já o Tiago Mota Saraiva se encarregou, com justiça e clareza. Acresço apenas o pequeno incómodo de ler as declarações de um ex-responsável pela Ordem dos Engenheiros usar de um desprezo tão leviano como irresponsável, tanto para o ofício de que faz profissão, como, gravíssimo, a própria qualidade da democracia, sobre a transparência dos métodos de contratação pública.
Retirado de qualquer leitura corporativista, que decerto Santo também não partilhará, subsiste uma ideia de arquitectura, da utilidade da arquitectura, da necessidade da arquitectura, do propalado papel social da arquitectura.
Além de decadente, pior, parece-nos inculta e ignorante. E isto é tão mais grave quanto se tratam de declarações de alguém que se bateu para que aos engenheiros pudessem ser assacados actos próprios e – exclusivos – da profissão do arquitecto. Ou talvez por isso, não surja surpresa.
A incultura revela-a o desprezo que Santo faz da arquitectura,como actividade implicada directamente com a qualidade de vida dos indivíduos, nas cidades e na paisagem, ao isolar a actividade do arquitecto sobrepondo-a à do engenheiro, das diversas engenharias. E esta é uma incultura que releva daquilo que tem sido a prática corrente dos últimos 36 anos. Se outro exemplo não existisse, temos um primeiro-ministro, engenheiro técnico civil, que usou do expediente permitido pelo famoso 73/73 para ele próprio «assinar» alguns projectos de arquitectura.
Se o arquitecto se confronta , e duramente, com a visibilidade física do produto do seu trabalho, num equilíbrio precário entre a sua vontade e as consequências do mesmo sobre a sociedade e o quotidiano dos indivíduos, - a arte social? – Santo omite que sejam essas atribuições do engenheiro. Talvez o catastrófico estado da nossa paisagem se avolume, sendo que é de escassa responsabilidade da arquitectura o estado da arte do território e das cidades portuguesas.
[Ordem dos Engenheiros, Aires Mateus & Associados]
Ao expôr os seus argumentos, num pressuroso liberalismo a la carte de interesse interesseiro, quando apela à vontade individual do promotor, Santo escorrega na armadilha do mais egoista corporativismo, quando ele mesmo se propõe negligenciar o que é do domínio da arquitectura e o que é do domínio da engenharia, na gula de assambarcar encomendas e trabalho numa época em que as mesmas escasseiam. O exercício é simples: ridicularizando o que é da arquitectura – a «estética», no seu texto – atribuindo-lhe meras competências decorativas, Santo recolhe para a engenharia a seriedade de coisas tão graves como a manutenção da sobrevivência: o imperativo da segurança. Ao brincar, com certeza involuntariamente, com esse horizonte da mortalidade, Santo coloca a engenharia na vanguarda da sobrevivência da espécie, num twist freudiano, que colhe sempre e atrai vastas audiências. E aqui talvez esqueça Santo que, justamente, a arquitectura é uma profissão que há uns poucos de anos alguém a teorizou como de firmitas, utilitas e venustas.
A lógica de Santo até parece ser interessante não fossem os factos uma irremdiável prova da ignorância de Santo. Um exemplo: o que são – ou eram – os programas Polis senão o consumir de milhões de euros do erário público a consertar o que foi estragado nas últimas três ou quatro décadas nas nossas cidades? Dinheiro que não temos para coser aquilo que a ânsia especulativa, quer do estado quer de privados, construiu ao longo de décadas de incúria.
Nas linhas assinadas por Santo são omitidos séculos de História de uma profissão, o respeito dos arquitectos, o amor pelas cidades, o interesse comum, por troca de uma contingente e egoista demagogia de apelo à classe.
Paradigmático.
Imperdoável.