alguma coisa está fora da Ordem*


[Alfragide]


Muito se têm questionado os arquitectos sobre a actividade da Ordem que os representa. Mais ou menos solitárias, estas reflexões surgem periodicamente na imprensa coincidentes com momentos relevantes da vida social, económica e cultural da nossa comunidade. Sugerem-nos e confirmam-nos estas ocasiões o íntimo e inelutável vínculo da arquitectura com a sociedade em que actua. Daqui, ser a arquitectura uma actividade de alcance social. Daqui, ser o trabalho do arquitecto, mesmo que voluntariamente refugiado na mais profunda solidão, representativo dos movimentos sócio-culturais que atravessam o nosso país.
Mas estar em sociedade não significará ser refém dela. Creio, aliás, que é também da essência da arquitectura um olhar crítico sobre os múltiplos domínios em que age. Da economia ao ambiente, das paisagens às geografias humanas, do território e das cidades ao íntimo gesto doméstico, da história e da tradição ao quotidiano, numa dança permanente entre escalas, tipos e saberes, que confluirão, consciente e inconscientemente, no projecto de arquitectura. É desta instabilidade entre o real e o especulativo que a arquitectura poderá ser operativa, justamente como pensamento sobre real, como actividade cultural.
Vem isto a propósito da divulgação pública do estudo do Prof. Augusto Mateus. E seria profícuo pensar a intervenção da Ordem dos Arquitectos, naquilo que está consagrado na alínea a do Artigo 3º dos seus estatutos -«contribuir para a defesa e promoção da arquitectura e zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de arquitecto» - a partir deste estudo encomendado pelo Ministério da Cultura.
O campo de intervenção do arquitecto, que se tem alargado nos últimos anos, não deixa, naturalmente, de estar ligado à indústria da construção. É pela construção que a arquitectura torna sensível o que antes é uma ideia; é pela construção que a arquitectura regressa e opera no mundo; é pela construção que o trabalho do arquitecto ganha especial relevância, no encontro com o trabalho dos outros de quem depende o erguer da arquitectura.
Numa economia em que o grosso do investimento é dedicado à construção, aproximadamente 50%, em que este sector é responsável por 10% do emprego e com um peso de cerca de 5% no PIB, os números trazidos à luz pelo estudo do Prof. Mateus suscitam alguma perplexidade. No sector cultural, segundo o mesmo trabalho, a arquitectura representa 0,6% do emprego e 0,7% do valor acrescentado bruto. Porque entendemos que o património da OA deverá ser a defesa da arquitectura e não dos arquitectos, achamos surpreendente o silêncio a que a mesma se remete face a estes números. Ou talvez seja este silêncio ruidoso consequência da inoperância da OA para além dos limites da gestão burocrática do dia-a-dia.
À visibilidade que têm adquirido alguns nomes da arquitectura portuguesa não tem correspondido o necessário esforço da estrutura da OA em aproximar-se dos reais problemas que afectam a prática profissional: dos sub-humanos recibos verdes, campo fértil de mão-de-obra barata para grande parte dos escritórios, à titubeante reacção – quando deveria ter sido acção – relativamente às adjudicações directas da Parque Escolar. Há todo um campo de acção em que a actuação da OA tem sido, no mínimo, omissa ou insuficiente.
O ensimesmamento da OA não pode ser justificado pelo pouco domínio do público do discurso disciplinar, numa espécie de ciclo fechado e cada vez mais diminuto, que resulta na quase irrelevância da OA na sociedade. Mais uma vez a frieza dos números pode deixar-nos atónitos: somos mais de 16.000 arquitectos, membros da OA, sem que esta seja capaz de produzir um discurso público e social pouco mais que vago e indiferente.
Indiferença de dois sentidos: se a OA é relapsa em ler os sinais da sociedade, é ela própria incapaz de produzir sinais que identifiquem a arquitectura como uma actividade essencial ao ordenamento do território, à adequação das múltiplas actividades e funções humanas ao bem escasso e precioso da paisagem, à importância cultural e vantagem económica do trabalho do (e com) o arquitecto em qualquer escala da construção.
Com certeza muitas das respostas a estas questões necessitarão de reflexão profunda e grande parte delas radicarão na estrutural crise que o país atravessa, mas o mutismo por que se tem pautado a OA nem dá resposta à sua missão de defesa e divulgação da arquitectura e muito menos dá expressão àquilo que, em primeira análise, a fez constituir-se, ser uma organização de valor social.
Porque só há um princípio a que a realidade está condenada, que será o que queiramos que seja, pode ser que um dia os arquitectos queiram uma realidade diferente.



*Caetano Veloso