[Le Diable, Probablement, Robert Bresson, 1977]
Abrir a porta, avançar pelo quarto, não é andar para diante por uma rua de uma cidade. Dois lugares do habitar, de habitar diverso, de mundos de possibilidades distintas. Ainda que por entre casas inquietas e igrejas desassossegadas e cidades desorganizadas, a maior interrogação: «cada vez mais habitada e cada vez menos habitável». A Terra. É esse o desespero deste filme.
elispse:
Charles investiga por entre os clochards da beira do Sena aqueles que sabem ou não caminhar. Pelo desgaste da sola das alpercatas, empirismo simples que, como voz entre o espanto e a certeza, lhe permite afirmar: tu, sabes caminhar.
Há qualquer coisa de crístico no caminho de Charles: os vagabundos tanto como discípulos ou detritos vivos da sociedade; a preocupação do seu círculo íntimo perante o futuro de Charles – futuro que Charles nega, na indiferença sobre o presente, a vida e o real. É preciso tudo destruir, avisa um jovem militante empertigado, para tudo re-construir. E Charles não acredita. Talvez tenha chegado tarde à revolução. Talvez ainda não tenha chegado a deus.
elipse:
Caminhar. Como quem procura, como quem marcha, como quem escolhe, como quem prescinde de mapas, como quem chega, como quem quer chegar.
Os corpos, nas casas, nunca são corpos, a câmara nunca verdadeiramente os filma. E Bresson repete-se nas mãos. As mãos que abrem portas. As mãos que lavam lágrimas. As mãos que dão abraços. As mãos que disparam o revolver. O corpo são sempre bocados do corpo. Verdadeiramente só o corpo intacto de Charles, nu, na água.
elipse:
Charles, flâneur parisiense, na aleatoriedade da indiferença. Nós, um pouco de todos, no autocarro onde todos nos interrogamos sobre o real que todos construímos. O diabo, provavelmente, explica, resignado, um de nós, sobre quem faz girar a História. Evidentemente que esta resposta não satisfaz Charles.
O pesadelo nuclear, a psicanálise, deus, Marx, a droga, os filmes, a morte, o indivíduo dissolvido na alienação da sociedade industrial.
elipse:
Charles caminha pela cidade como quem caminha sobre as águas. Sabe que vai morrer. Escolhe exactamente como e onde vai morrer. Uma bala é suficiente, mas não chega. Aponta no mapa do metro, por baixo da superfície da cidade, onde quer morrer. Uma cidade como a via dolorosa. A via dolorosa está congestionada.
elipse:
uma cidade, mesmo no pessimismo apocalíptico de Bresson, é o melhor lugar para se viver. E morrer.
elipse: