A coincidência das fontes visuais e literárias leva-nos a considerar como uma apropriada hipótese de que a imagem reproduz o plano definitivamente aprovado para a Praça do Comércio, em grande parte ensaiado no dia da inauguração da estátua equestre, a 6 de Junho de 1775, com recurso à simulação em madeira de parte substancial do projecto.
A Praça Real do Tejo in Praças Reais - Passado, Presente e Futuro, Manuel Figueira de Faria
Tudo isto lançou um novo debate sobre a necessidade de reformas e de uma mudança de mentalidades e procedimentos no país, com a participação intensa e conflituosa dos partidos políticos e dos grupos profissionais mais em xeque.
Em Portugal, a História não acabou.
Uma Democracia Europeia (Desde 1976), in História de Portugal, Rui Ramos
Um discurso sobre o poder.
É a estória com que comummente narramos da relação de cada um nós com a realidade portuguesa. À mesa do café, à saída de infindáveis e estéreis «reuniões de trabalho», no adro da igreja, no táxi, somos jogadores de um jogo absurdo entre nós e eles. Eles, o Poder.
A narrativa portuguesa talvez se destaque por ter sido levantada pela própria construção do poder político. Ou o poder político construiu-se impondo uma narrativa de força e de poder que agregasse um território desigual, comunidades diversas, interesses antagónicos e, as mais das vezes, indiferença generalizada. E é provável que seja este o fio comum ou unificador dos acidentes que aconteceram aos que habitam o bocado mais ocidental da Península Ibérica. E a ideia, hoje inquestionada, da unidade histórica, que julgamos perene e gerada na vontade de todos os do séc. XII em diante, será, possivelmente, a vitória do Poder. A sua derrota é a pequena conversa de café, esse absurdo palavroso em que habitualmente nos detemos como atalho a redimir a indiferença, também generalizada, com que construímos um vago destino colectivo.
A produção de um destino – mítico nome que damos à vontade que nos excede – jaz sob os escombros da tibieza do viver habitualmente. Burocrático, evidentemente. E a burocracia é a indecifrável teia de dependências e inter-dependências, sem a qual nada é possível e na qual o fazer falece às portas do devido procedimento. O assentimento que a cada vez mais proficiente e opulenta cadeia hierárquica terá necessariamente que emitir é o visto possível ao fazer e a marca do Poder. Em qualquer actividade da nossa vida, individual e colectiva. O Poder engrandece-se, a vontade individual expira. Somos desertos de responsabilidade.
[Blow Up, Michelangelo Antonioni, 1966]
Ao arquitecto cabem decisões.
As decisões tomam-se pelo mínimo denominador comum: «isto em Portugal!...»; «é mesmo à portuguesa»; «conhecendo a nossa realidade como conheço». Expressões epidérmicas da estrutura inconsciente que nos governa as resoluções. Indecididos, equivocamo-nos, em projecto, sobre que realidade será essa. Inventamos o «cliente», utilizador, um típico pacato – pacato – cidadão que se moverá nesta realidade que irradia da auto-representação auto-depreciativa.
Inventamos um modo operativo dentro desta realidade funcionária. A praxis é a do pequeno expediente, entre leis, num nebuloso labirinto jurídico. Mascara-se de legalidade a realidade. Expede-se o dia-a-dia em subtis manobras através da miríade de poderes. No residual espaço vazio entre eles. Mas dentro da omnipresença do grande Poder.
Haverá uma ética do arquitecto? Porque se a estética é uma ética da incansável procura da beleza, mesmo que na fealdade, a que se remeterá a intervenção do arquitecto na comunidade?
Desenhar a partir dessa auto-representação perpetuando-a resignada?, redefinir radicalmente a realidade em tabua rasa do que apreendemos sobre nós mesmos?, ou inventar a nova realidade – uma nova que emerge necessariamente de cada projecto - a partir do que pensamos que somos para, com e através da arquitectura, negociar-se o que desejamos ser? Não será questão nova. Pensando bem, era a verve revolucionária e radical que explodiu na miríade modernista, esse desejo fundo do novo e da superação de uma civilização iníqua. Pensando bem, é este o labirinto português: entre um passado resignado e o presente de uma modernidade deslumbrada, recente e imperfeitamente adquirida, que se julgou futuro. Pensando bem, passado e futuro é o labirinto do desejo do arquitecto no presente.
Não é nova nem original esta invenção da aparência. Do Terreiro do Paço aos estádios do bodo real futebuleiro, panis et circencis, como quem afirma a autoridade, a capacidade, a visão, dentro da pequenez remediada. Porque também a arquitectura é, necessariamente, um discurso do e sobre o poder. Até no modo quase impossível com que por aí se vai erguendo.