Siza do mundo

Que marcas ficaram da educação dada pelos seus pais?

Tudo de bom que tenho e posso ter. O meu pai era engenheiro e professor na Escola Industrial à noite, uma pessoa que trabalhava muito, inteligente e culto. A família era a preocupação máxima naqueles tempos que não eram fáceis: éramos cinco, o meu pai tinha bom emprego, mas os salários eram baixos e não havia grandes apoios. A minha mãe dedicou-se aos filhos e tivemos uma infância muito feliz.

Quis ser escultor, mas a ideia de vida boémia associada à profissão não agradou à família. Agradece ao seu pai ser arquitecto?

Ele gostaria mais que fosse engenheiro, arquitecto foi tolerável [risos], mas nunca me impôs coisa alguma, era uma pessoa encantadora, não dava para discutir ou tomar atitudes radicais. Fui para Belas Artes com a ideia de mudar paulatinamente para escultura, mas depois interessei-me pela arquitectura.

O interesse teve a ver com os professores?

Teve a ver com a renovação profunda, pois o corpo docente, quando entrei, em 1949, estava a aproximar-se ou mesmo na idade da reforma. Houve renovação muito certeira, tendo vindo de Lisboa para o Porto o mestre Carlos Ramos que chegou como professor de Arquitectura e passou a director quando o anterior saiu. Era uma pessoa de grande qualidade, grande arquitecto e pedagogo, um homem de grande diplomacia, capaz de levar avante enorme renovação num tempo em que era difícil e, sobretudo, não era bem vista. Escolheu com grande certeza o novo corpo docente quando não havia concursos, optou por gente muito nova, alguns recém-formados e já num empenho grande pela conquista da modernidade que não era muito bem-vinda naqueles tempos de ditadura.

O hábito de ter muita gente à mesa em casa ajudou no diálogo que quer no atelier?

Não directamente, mas o ambiente em que fui educado influenciou. As famílias eram grandes, havia proximidade de vizinhos, ambiente confortável - embora por vezes asfixiante e fechado - e estabilidade, substituída por mobilidade.

E isso é bom?

Como tudo tem duas faces: é bom pela abertura, maior contacto e conhecimento, mas também se criou uma instabilidade que afecta ou caracteriza um pouco a própria arquitectura.

Em que sentido?

No sentido em que, por exemplo, hoje não se faz ou aluga uma casa para gerações. A dispersão da família vai até à emigração, à distância, e isso, em relação à arquitectura, cria um apetite não da qualidade de antes, mas da fácil reciclagem e mudança. Sinto na arquitectura de hoje uma menor qualidade física e de durabilidade. Não é por acaso que aparece na arquitectura moderna o ‘plan libre', ou seja, uma maneira de as casas se poderem transformar, prevendo uma grande liberdade no projectado, mas com a possibilidade de reciclagem que, até certo ponto, é ainda um desejo de estabilidade, pois reciclar/transformar tem qualquer coisa que se pretende manter. Mas hoje constrói-se com frequência a pensar em 20 anos de vida da casa, não há essa qualidade estável e intemporal dessa altura. Isso não é assim tão directo e autêntico. Reparei, quando tinha trabalho em Berlim, que os arquitectos com mais prestígio viviam em casas antigas e chegavam a subir quatro pisos todos os dias, uma vez que não tinham ascensores. Era o ambiente não só da cidade, mas da própria casa - sem ‘plan libre', as casas antigas são muito flexíveis, pois os espaços não são especializados. Na arquitectura de hoje o que se vê nas casas é um espaço próprio para a sala de jantar, outro para a sala de estar, outro para o quarto... conformado de tal maneira que é difícil modificar o funcionamento da casa. Nas antigas, as divisões eram quase todas iguais e podia mudar o uso. A família crescia ou decrescia e compunha-se o modo de utilizar a casa.

Costuma dizer que o arquitecto é um especialista em não ser especialista...

É um trocadilho que faço [risos]. A especialização existe e é necessária, mas isso não deve significar dispersão e muitas vezes significa. Na minha profissão, há muitos projectos em que o arquitecto desenha a casa; depois vem um engenheiro e estuda a estrutura para cumprir aquele desenho; vem o electrotécnico e coloca uns candeeiros; vem o do ar condicionado e coloca umas grelhas, isto é, absolutamente disperso. Ora, a especialização é necessária, mas o trabalho de equipa é indispensável sob pena de haver perda de qualidade. Desde o início uma equipa tem de dialogar, surgem sempre muitas contradições, os interesses directos e imediatos de uma das especialidades colidem com os de outra e é preciso trabalhar em equipa. Por vocação, o arquitecto está talhado para ser o coordenador e não pode ser especializado em tudo, devendo concentrar-se nessa coordenação em direcção a um todo coerente.

Na apresentação da tese de um discípulo falou na arquitectura associada à alegria que contamina os espaços. É uma ideia que liga à sua obra desde o início?

Quando disse isso queria referir-me, sobretudo, a este aspecto: o trabalho do arquitecto exige muita concentração e pode ser muito aborrecido, cheio de obstáculos e exigindo quase uma obsessão na concentração. Isto só pode fazer-se bem com prazer. Se predominam os aborrecimentos, esta actividade é para esquecer. Há outros aspectos aos quais ligo a ideia de prazer que compensam isto e têm de ser conquistados, mesmo que seja muito difícil. O resultado disso deve ser uma atmosfera muito agradável e que recebe, tem abertura para as pessoas viverem a sua vida. A arquitectura não pode ser impositiva no sentido de como se utiliza e é fruída. E a isso ligo a ideia de alegria no sentido de plenitude no que se refere à casa.

O Pavilhão de Portugal, um dos seus projectos, pode servir como pagamento de dívida ao Estado. Como analisa isso?

Já tive a informação de que iria ficar consignado à Universidade de Lisboa...

E parece-lhe boa ideia?

É uma possibilidade boa, assim haja disponibilidade financeira. É uma utilização muito apropriada para aquele edifício que foi feito com a condição de ser adaptável a qualquer programa. Esteve para ser instalações do Governo ou centro cultural, nada disso foi para a frente, tenho esperança que agora se concretize.

Com trabalho espalhado pelo Mundo inteiro, identifica uma cidade na qual se reveja como arquitecto e como cidadão?

Há muitas e conheço poucas, porque ao fim e ao cabo o Mundo é muito grande [risos]. Dou o exemplo de Nápoles. Muitos visitantes classificam-na como caótica, mas dizem os de lá que perigoso é passar o sinal verde [risos]. Mas há algo muito interessante: não há acidentes. Porque se criou uma cultura de convivência que tem a ver com essa exteriorização vital, acompanhada por respeito e cuidado. Quem não é de lá fica estarrecido, eu guiei lá e parei para que fosse um amigo a conduzir. Claro que tem aspectos negativos, mas é uma cidade fascinante.

Elegeria mais alguma?

Muitas, quase todas em que trabalhei. Por exemplo, Berlim: quem visita a cidade tem ali à mão a história da evolução da arquitectura moderna, está lá tudo, incluindo os arquitectos que tiveram de exilar-se e deram impulso determinante nos Estados Unidos. Posso dizer que não há cidades desinteressantes.

Na família alargada inclui Le Corbusier, Mies van der Rohe, Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto, Gropius, Utzon, Niemeyer...

E p'raí mais mil! E alguns a nascer [risos]...

Certo, mas a pergunta é o que há de comum para se filiar nessa família grande?

Modernidade. Sobretudo no tempo em que fiz escola, a arquitectura moderna era quase considerada perigosa e havia um empenho numa suposta arquitectura nacional: há grandes arquitectos que tiveram de remeter-se ao que chamámos "português suave" ou não teriam trabalho. Fizeram obra de grande modernidade, mas, depois, tinham de conter-se como Rogério de Azevedo, cuja obra era de uma modernidade explosiva. Havia pouca informação, um corpo docente de qualidade, mas envelhecido e, em muitos casos, frustrado por causa do ambiente da profissão. Quando entrei a referência quase única de modernidade era Le Corbusier.

Maiores perigos para a arquitectura?

Vi há pouco tempo um documentário onde se dizia que a arquitectura passara a ser mercadoria e não objecto de desejo ou necessidade, atribuindo-se a isso certa decadência da própria. No caso português está afectada por coisas que vêm da Comunidade Europeia. Exemplo: em nome do mercado livre, deixa de haver regras para honorários dos arquitectos e, em alguns casos, estabelece-se uma concorrência feroz.

Gosta de Pessoa, Picasso, ópera, a voz de Caruso, cinema - como ‘Citizen Kane' e neo-realismo italiano -, jazz de Miles Davis e Billie Holiday. E mais?

Tudo o que referiu tem muito de afim. A arquitectura tem muito a ver com música, cinema, ballet, pintura, escultura, literatura. Faz-me impressão haver quem considere que um arquitecto não pode fazer escultura por estar a meter a foice em seara alheia quando são actividades com muito em comum.

Há alguma obra que gostasse de realizar?

Não penso nisso. Quando me entregam trabalho a primeira coisa que penso é: ‘Que trabalhão que vai ser!' [risos] Nunca pensei assim, não luto por isso e penso que não vale a pena.


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Compreende o comportamento da União Europeia face à Grécia?

É lamentável e agudizado com o problema da migração e a dificuldade de controlo face à dispersão das ilhas, também verificada em Itália. E tudo é remetido para a ideia de que ‘estes países do sul não sabem pensar'. Mas agora bateu à porta de Inglaterra através de França, de maneira que há um sobressalto. E há países em que se erguem muros depois de tanto regozijo com a queda do muro de Berlim por outras razões. A Comunidade Europeia está a construir uma prisão para si própria, pois esses muros funcionam ao contrário.

Está a falhar a União Europeia, entendida como espaço de solidariedade?

Desapareceu por completo.

Vê-a caminhar para a desunião?

A continuar assim não tenho dúvidas, mas espero que não continue assim. Esteve à beira de suceder a primeira expulsão de um país da Comunidade Europeia, coisa que não estava prevista nos seus princípios. E havendo essa também surgiriam a segunda e a terceira...

Um efeito dominó?

E nós numa calha de transporte rápido. Mas o mundo é muito mais do que a Comunidade Europeia, muita coisa está a acontecer. Se os países do sul da Europa compram menos isso prejudica a Alemanha, mas também há transformações na China que põem em questão esse grande mercado como alimento europeu. Mesmo querendo desligar e fragmentar, tudo está ligado. Acredito que vá haver modificação, porque, a páginas tantas, tal como os migrantes vão bater à porta, outras coisas irão bater à porta. Se não houver, a mudança mais radical seria mesmo o fim da Comunidade Europeia.

Como analisa o papel da Alemanha?

Ultimamente veio a notícia de que a Alemanha ganhou 100 mil milhões de euros com a crise grega. Isto diz tudo. A não transformação das decisões actuais tem muito a ver com isto. Cria-se de novo um nacionalismo e um egoísmo que são o oposto do que era a ideia utópica e romântica de Comunidade Europeia.

Nunca o convenceu o projecto?

No início convenceu. A ideia que estava por trás da fundação convenceu-me e houve um arranque ainda mais convincente. Uma das razões por que Portugal mudou profundamente, e vejo isso muitas vezes esquecido, foi pelo apoio, umas vezes bem usado, outras mal, vindo da Comunidade Europeia. Falando de coisas comezinhas, lembro-me bem do que era chegar a Lamego, Vila do Conde ou Viana do Castelo quando tinha trabalho lá! Tudo mudou, nas cidades do interior há universidades, bibliotecas, equipamentos vários, no essencial a mudança foi muito positiva.

O Pritzker, outros prémios ganhos e doutoramentos honoris causa o que lhe dizem?

Têm um significado para o ego e em termos de acesso a trabalho, embora às vezes funcionem ao contrário. Nunca perdi a consciência de que é algo que pode ou não acontecer, pois a atribuição de prémios depende de júris, circunstâncias, eventos, etc. Não sou o maior, porque há muito bons arquitectos no Mundo, uns mais conhecidos, outros menos.

Um dos seus filhos [ndr: Álvaro Leite Siza, irmão de Joana Marinho Leite Siza] é arquitecto e premiado: motivo de orgulho ou o cumprimento livre da vida dele?

Não fiz pressão para que fosse arquitecto; pelo contrário, várias vezes lhe disse: ‘Não te metas nisso.' Mas é a sua paixão e respeito a escolha.

Como é a vizinhança entre ateliers com Eduardo Souto de Moura no sentido do diálogo e da partilha de ideias?

Temos esses momentos, mas não tão frequentes como se possa julgar, porque ele tem vida muito ocupada, muitas viagens, eu tenho algumas e, às vezes, passamos uma semana sem nos encontrarmos.

Mas é útil?

Com certeza e, por exemplo, para Nápoles o convite foi feito aos dois.

O tempo é grande arquitecto ou escultor?

Entre ambos há grandes afinidades.

Revê-se mais no primeiro ou no segundo?

Atribuo mais à arquitectura. Até no Chiado foi notório, concluída a recuperação, eu não deixava de passear pelas ruas e sentir uma certa frustração porque estava tudo muito fresco, limpinho e faltava uma certa ‘patine' no sentido geral... Uma cidade não se faz em três anos, é preciso ocupar, transformar, haver intervenções várias que um arquitecto não pode simular. A respeito da Malagueira em Évora: criticava-se muito por as casas serem todas brancas e semelhantes. Eu sabia que iriam ter intervenções, jardins e tal... E isso aconteceu, algumas não me agradam, mas aquele sector tem vida própria, mesmo sem os equipamentos projectados.

Como é que um antigo praticante de hóquei em patins vê o desporto português?

É muito diferente, joguei só nos juniores do Infante de Sagres e pagava o bilhete nas deslocações. Agora é um negócio de milhões e isso traz atrelado um aumento de qualidade impensável. A tal transformação na sociedade portuguesa também passa pelo desporto: quando apareceu a primeira medalha de ouro olímpica foi uma enorme excitação.

Só com Lopes, Rosa, Fernanda e Nelson...

Sim, mas houve outras participações boas em muitas modalidades. No fundo, é como os prémios, passa por várias questões. Claro que é extraordinário: lembro-me de assistir na Holanda, em Roterdão, à vitória de Carlos Lopes na maratona e a excitação era enorme! Outro caso é o de Rosa Mota - ganhou no Japão e têm lá um monumento em sua homenagem. E faz sentido: aquela miúda franzina a impor-se de um modo tão espectacular...


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O projecto democrático em Portugal evoluiu bem ou mal?

A história é muito complicada e, nos últimos tempos, há uma regressão dramática...

Vê na sociedade portuguesa aspectos que lhe lembrem tempos da ditadura?

Não digo tanto, nem por sombras, mas, em capítulos como saúde ou educação, onde a melhoria foi fantástica, estamos a assistir a inversão.

A culpa é nossa, como eleitores incapazes de distinguir os melhores projectos?

Cada um percebe de acordo com os seus interesses, não vou dizer que os eleitores são ignorantes. O que tem acontecido é um medo de mudança, talvez provocado pelo que aconteceu na Grécia. Ficou bastante claro com o caso grego que, surgindo um governo a querer real transformação da situação actual da - como é que se chama? - austeridade, é posto na prateleira, vai fora... De modo que não me espanta se no espírito de muitos eleitores estiver o receio do pior, este conformismo de ‘está mau, mas com um salto no escuro pode ficar pior'. Isso deve ter influência, porque senão haveria uma transformação radical neste País. Não me parece que as pessoas não saibam interpretar ou não tenham consciência do que se passa quando cai na própria pele.

Como olha figuras políticas diferentes como são Passos Coelho e António Costa?

Olho com esperança de que haja uma mudança. Não faço prognósticos, mas a mudança nas próximas eleições é fundamental. De António Costa, a quem conheço de trabalho na Câmara de Lisboa, tenho a melhor das impressões, penso ser alguém com grande capacidade de decisão.

Espera que o PCP seja Governo algum dia?

Pode até ser uma vantagem que não, permanecendo como voz crítica expressiva. E, no plano autárquico, vem realizando trabalho notável.

Tem falado sobre a ideia simultânea da experiência e da necessidade de libertação dessa experiência...

Não é bem libertar, é conviver no sentido da inovação e o apetite que aparece mais facilmente na juventude. O envelhecimento obriga a uma disciplina de preservação de uma certa espontaneidade e paixão pelo que se faz. Aqui a experiência não deve funcionar no sentido de predominar a ideia pré-estabelecida, mas sim a pesquisa e a inovação.

Aconselha na arquitectura um olhar que não seja superficial, mas uma análise em profundidade. Aconselha-o também à sociedade portuguesa?

Não aconselho - é uma necessidade que toda a gente sente, até porque sofre as consequências de determinadas decisões. Esse sentido crítico que estava subterrâneo e não se expressava, impedindo o diálogo e o enriquecimento das análises face ao que se passa, é fundamental.

Fica preocupado com a predominância do factor económico sobre os restantes?

É um bocado aborrecido abrir o jornal e só ver números. Começo a afastá-los para ver se encontro as pessoas, mas é difícil. Não entendo essa ideia de o País estar bem e as pessoas mal. Ou por outra, entendo...

Como é que entende?

Como um álibi: apresentar algo positivo, mesmo que não esteja enraizado na realidade.

A sociedade portuguesa decepciona-o?

Não só a portuguesa, em grau diferente conforme o que se passa por país e dentro da Comunidade Europeia em cada país consoante a análise e as considerações do que se passa. No fundo, isto tem geografia muito interessante ou desinteressante em função do ponto de vista.

Há ideologia na arquitectura em geral?

Está cheia dela... O arquitecto, com raríssimas excepções, trabalha contratado para outros e o seu desempenho é como uma caminhada entre condicionamentos. Depois do 25 de Abril, quando houve os programas SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), foi um momento muito importante para a arquitectura no plano transformador, embora vilipendiado por alguns. Entre os muitos debates que fazíamos, entre nós e com as populações, para alguns havia uma grande esperança de uma arquitectura de vanguarda e sempre pensei que não iria acontecer - quando aconteceu durou pouco como na vanguarda soviética com um período curto de grande renovação. No caso do SAAL, até pela urgência que havia na acção, com grande precariedade naquele programa, muito dependente da evolução política, o momento foi transformador. Depois foi classificado como um fiasco com o suporte de se ter construído pouco, mas esqueceram-se de dizer que o programa só durou dois anos. Em minha opinião fez-se muito e teve grande notoriedade fora de Portugal. Os primeiros trabalhos que tive lá fora, na Alemanha e na Holanda, foram motivados pelo conhecimento acerca desse programa.

Ter deixado a sua intervenção na sociedade sem receios de se assumir politicamente criou-lhe constrangimentos?

De um modo geral criou aos intervenientes no programa SAAL, penalizados e marginalizados.

Por que razão a admiração ao seu trabalho surgiu primeiro no estrangeiro?

Nunca é assim, preto e branco. Tinha clientes privados que apreciavam o meu trabalho e ficaram amigos, algo que, no processo de um projecto, é uma grande ‘performance' [risos]. Havia outros que não gostavam, mas continua a ser assim. Em relação ao reconhecimento fora com base nesse tipo de trabalho explica-se porque, na Europa, havia uma onda semelhante - o tema da participação era fundamental em Itália e França. A tensão grande tinha a ver com o que se passava nesses países e a situação política na Europa era conturbada. Havia uma grande atenção ao que se passava em Portugal - basta lembrar que os Estados Unidos chegaram a ter uma esquadra no Tejo - e a este programa que tinha a ver com muito trabalho em curso nos países que referi. Fui chamado à Alemanha e à Holanda no âmbito de um trabalho em que a participação era não só desejada, mas necessária. Na Holanda havia o tema dos imigrantes e dos conflitos, existindo um desejo de integração com base num programa de assistência social; na Alemanha o tema latente era já a unificação do país. Construí muito perto do muro, discutia-se e desenhava-se com a crença dos berlinenses envolvidos no projecto na perspectiva de que seria unificado. Pensei que os fulanos estavam loucos, mas, afinal, não...

Sente a recuperação do Chiado como alteração de ideias feitas em relação a si?

Quando me foi entregue o trabalho havia já uma polémica, porque muitos consideravam que era a oportunidade de introduzir a arquitectura moderna no Chiado. Muitos apreciaram o meu plano, outros criticaram-no como conformista e conservador.

Quem for lá hoje vê no que se transformou...

Agrada-lhe?

Muito, muito... Não me agrada tanto que não fosse prolongado por toda a Baixa e todo o centro de Lisboa, embora tenha sentido, com esta administração, a vontade de não esquecer o que foi aquele trabalho e as consequências que teve. E digo isto porque uma parte do plano feito na altura e nunca realizado foi retomada pela Câmara actual há dois anos e está quase concluída.

Mas rejeitou a hipótese de ter intervenção mais ampla...

Cheguei a ser convidado pelo presidente Sampaio para estender o trabalho do gabinete à Baixa. Expliquei ao presidente que eram coisas com ritmos diferentes. O Chiado, núcleo compacto com determinadas características, era algo de grande urgência, em relação ao qual se exigia uma intervenção muito rápida e estruturada, enquanto que, na Baixa, é um processo a um ritmo diverso, longo e disse-lhe que esse problema deveria ser canalizado, tal como o do Bairro Alto e de outros em Lisboa, para uma estrutura dentro da Câmara. Sampaio compreendeu e aceitou, mas a questão da Baixa não foi logo encarada. Neste momento há sintomas melhores, nem sempre bem realizados. Quanto à inovação, a Baixa e o Chiado são como um edifício único pela maneira até como arrancaram com o terramoto de 1755, não faria sentido realizar um implante numa zona que estava a funcionar bem, apesar de já ter sintomas de desertificação como noutras cidades.

Partilhou o seu arquivo com Gulbenkian, Serralves e Canadá: qual é a mensagem?

Um interesse do Canadá por ter nos seus arquivos material meu e que apareceu quando não havia cá. Talvez fizesse o mesmo caso já existisse cá, pois os arquivos do Canadian Centre for Architecture são os melhores. O acordo entre as entidades prevê mesmo critério e catalogação para partilha e consulta no Mundo, embora a directa seja só para profissionais e estudiosos, evitando que desapareçam desenhos. Também há material meu no Pompidou e no MoMa.


Diário Económico | 03.09.2015