Manuel Almeida






Podemos guardar confortável distância em cinismo e ficarmo-nos pelas gargalhadas (alarves?) ou podemos tentar um olhar mais largo sobre o fenómeno dos Tesourinhos das Autárquicas 2013.
A reflexão sobre a representação gráfica dos cartazes eleitorais, que o Mário Moura vai produzindo, e o olhar mais «sociológico» do António Araújo, têm-nos dado alguns elementos a partir dos quais importa pensar. A perplexidade sobre este Portugal que emerge de quatro em quatro anos e mais duas ou três coisas sobre que ocorrem sobre o assunto.
Desde logo, a corrosão e degradação do regime. Dito assim poderá parecer gongórico, à Vasco Pulido Valente, com as trombetas do Apocalipse a soarem. Mas importa realmente pensar sobre que cultura floresceu em Portugal nos últimos 40 anos.
Não somos suficientemente ingénuos para desconhecer a irrelevância do voto. A famosa crise de representação nas democracias ocidentais e a lenga-lenga dos poderes, de facto, ocultos; a ineficácia de sistemas de soberania do Estado-Nação perante os fluxos da «globalização». Depois da ditadura, a implementação, por importação, de um regime político, estranho e colado à pressa, sobre um estrato cultural a ele adverso: a Democracia de partidos será sempre a dissensão e, queiramos ou não, uma antropologia da portugalidade, a Tradição, será sempre de união, (cf. nos inúmeros cartazes, sobretudo para as juntas de freguesia, a apelarem à união das gentes e das «forças vivas» da terra). Depois, a lógica da comunicação, que foi tomando conta do lado visível da política, em que, no dizer de Salazar «o que parece, é», o imediatismo do «passar a mensagem», que esvaziou a própria mensagem. Agora, as redes socias e a voragem «viral» que não passa de imitações de imitações de imitações de imitações, (Guterres inspirado em Tony Blair que fora inspirado em Bill Clinton, por aí, que inspira o candidato à câmara de Cinfães, que inspira a candidata à junta da Afurada).
Não somos também suficientemente cínicos para não entender em muitos destes movimentos genuínas preocupações com a comunidade, verdadeiras vontades de transformação da vida, sobretudo ao nível local - e em última análise, é esta a Tradição do poder em Portugal, o municipalismo -, que ainda vai funcionando na boa e velha lógica das solidariedades de vizinhança e em humaníssimas «redes de proximidade», fazendo jus à lógica inconsciente do ser português em «não deixar ninguém para trás». Mas tudo isto nos aparece como um mundo kitsch, pastiche de contemporaneidade e arcaísmo que nos diz muito sobre o estado da nação cultural.
A comunicação poderá ser radicalmente contemporânea, (vídeos, hinos, eventos, redes sociais), para uma mensagem – quando há mensagem – radicalmente antiga, (feita de apelos à união entre os portugueses). De certa forma, uma maneira «genuína» ou «essencial» do ser-se português, na ambiguidade permanente entre o que vem lá de fora com uma forma muito peculiar de o absorver e incorporar numa maneira de ser já muito antiga.
Bem sei, é uma tese perigosa e que pode dar azo a interpretações para-fascistas ou integristas, o apelo a uma essencialidade ou ontologia do ser português. Mas ainda assim, há algures qualquer coisa que nos junta, uma cola que nos agarra enquanto comunidade e, lamentavelmente, contra os institutos de estudos sociais das universidades novas de Lisboa, essa cola é uma cultura, uma antropologia, cavada demasiado fundo, no rosto de cada português.


Não há muitas ilusões. Passos ou Sócrates ou Seguro são constituídos da mesma massa que Manuel Almeida, o candidato do PTP à câmara de Gaia e estrela cadente desta campanha. Não fora os assessores, os marketeiros, os publicitários, os comunicadores, no fundo, o capital de uma cultura meramente de imagem para a imagem e de aparência. E é este mundo subterrâneo, este Portugal constituído pela «massa» popular que espanta a ilustre Lisboa dos almoços de negócios e das redacções de jornais e do Lux. Estranhamente o mundo de quem mais clama pela Democracia e a quem mais repugna o povo que lhe deve dar corpo.