da Liberdade


[A Laranja Mecânica, Stanley Kubrick, 1971]





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A liberdade de escolha é assim tão importante, afinal de contas? E, já agora, o homem é ao menos capaz de a exercer? Além disso, será que o termo "liberdade" possui em si mesmo algum significado? Eis perguntas que eu me sinto obrigado a formular e cuja resposta procuro obstinadamente. Para já, devo dizer que tenho sido ridicularizado e alvo de censuras por exprimir os meus receios de que o poder do Estado moderno - seja na Rússia, na China, ou naquilo a que poderemos chamar a Anglo-América - venha a coarctar a liberdade do indivíduo. A literatura já nos avisou dos perigos deste poder, em obras como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, mas as pessoas "sensatas", a quem a escrita imaginativa não impressiona muito, estão sempre a dizer-nos que temos poucas razões de preocupação. Aliás, a obra de B. F. Skinner Para Além da Liberdade e da Dignidade foi dada à estampa precisamente quando A Laranja Mecânica se estreou nos cinemas, pronta a demonstrar as vantagens daquilo a que podemos designar por lavagem ao cérebro benéfica. O nosso mundo está pelas ruas da amargura, diz Skinner, assolado pelos problemas da guerra, da poluição do meio ambiente, da violência na sociedade civil, da explosão demográfica. O comportamento humano tem de mudar - isto, afirma ele, é tão evidente que poucos discordarão -, e precisamos de uma tecnologia capaz de alterar o comportamento humano. Podemos pôr de parte o homem interior, o homem que se nos depara ao travarmos discussões com a nossa consciência, o ser oculto preocupado com Deus e com a alma e com a suprema realidade. Temos de encarar o homem pelo lado de fora, analisando, em particular, o que leva a que um dado tipo de comportamento humano dê origem a um outro. A abordagem behaviorista do homem, de que o professor Skinner é o expoente máximo, considera que são os estímulos, aversivos ou não-aversivos, que incitam o ser humano a executar os diversos géneros de acções. O medo do chicote fazia o escravo trabalhar; o medo do despedimento ainda hoje faz trabalhar o escravo assalariado. São reforços negativos como estes, usados para nos espicaçar, que o professor Skinner reprova; ele deseja, isso sim, um uso mais frequente de reforços positivos. Não se ensinam acrobacias a um animal de circo com métodos cruéis, mas sim com brandura (Skinner lá deve saber: grande parte do seu trabalho experimental foi levado a cabo com animais; algumas das suas proezas no domínio do condicionamento de animais alcançaram um elevado grau de profissionalismo circense). Caso recebamos os estímulos positivos certos - a que não reagimos racionalmente, mas através dos nossos reflexos condicionados -, todos nos havemos de tornar cidadãos melhores, submissos face a um Estado que preza, acima de tudo, o bem da comunidade. Não devemos, conclui esta argumentação, recear o condicionamento. É necessário sofrermos um certo condicionamento, caso desejemos salvar o meio ambiente e a nossa raça. Porém, terá de ser um condicionamento em moldes certos.

Segundo este raciocínio skinneriano, é o condicionamento em moldes errados que leva o herói de A Laranja Mecânica a converter-se num modelo da não-agressão (ainda que dilacerado por vómitos). O facto de eu próprio condenar qualquer género de condicionamento dever-se-á certamente, deduzo, à força da tradição religiosa em que fui criado. É verdade que fui, por assim dizer, condicionado por ela, mas a minha razão veio corroborar as convicções que sinto em mim de forma instintiva. A minha família provém do Lancashire, esse condado setentrional que outrora constituía um bastião da fé católica. A Reforma protestante, que converteu a Inglaterra naquilo que ela hoje é, nunca chegou a penetrar no Lancashire, ou, se o fez, fê-lo de modo suave e moderado, por meio das infiltrações pacíficas dos períodos mais tolerantes que se seguiram às imposições sangrentas dos Tudors. O género de protestantismo que floresceu na época de Cromwell e gerou uma nova raça de mercadores burgueses era calvinista. O seu âmago doutrinal era a predestinação. O homem não podia alcançar a salvação graças aos seus esforços; o seu estado futuro fora predeterminado por Deus.

O catolicismo rejeita uma doutrina que parece mandar certos homens arbitrariamente para o Céu e outros - de modo igualmente arbitrário - para o Inferno. O nosso destino futuro, diz-nos a teologia católica, está nas nossas mãos. Nada há que nos impeça de pecar, caso o desejemos; ao mesmo tempo, nada há que nos impeça de ir ao encontro das fontes da graça divina que nos proporcionam a salvação. O facto de duas doutrinas opostas - a do livre arbítrio e a da predestinação - conseguirem subsistir no seio da mesma fé religiosa requer uma explicação. Para começar, é preciso ter em conta o postulado da omnisciência divina. Se Deus sabe tudo, sabe também se eu irei alcançar a salvação ou se irei ser condenado às penas eternas: desde o início dos tempos, tenho já um lugar reservado na minha morada final, qualquer que esta seja. Porém, se Deus concede ao homem o poder de escolher livremente, podemos considerar que Ele oculta deliberadamente aos Seus próprios olhos a percepção daquilo que o homem irá fazer com esse poder. Um Deus omnisciente e omnipotente, num gesto de amor pelo homem, limita a um tempo o Seu próprio poder e o Seu próprio conhecimento.

Na sua autobiografia, Sean O"Faolain dá conta da incapacidade que sentia para conciliar o livre arbítrio humano com o conhecimento total de Deus, dificuldade esta que ele acabou por superar certo dia - num súbito relâmpago de clarividência mágica ou miraculosa -, antes de uma viagem de táxi por Manhattan. O"Faolain formulou a ideia nestes termos: qualquer acção do homem permanecia no domínio da livre escolha até o homem a executar. Uma vez executada, convertia-se em algo que a vontade de Deus ordenara. Ele e o taxista, eufóricos com esta descoberta, acabaram os dois nos copos.

Os calvinistas, porém, sempre dispuseram de uma peça de artilharia pesada para utilizar na sua guerra em defesa da predestinação. Quando entram em campanha, apontam ao exército do livre arbítrio o canhão da Queda. A queda de Adão deveu-se ao pecado original da desobediência, e ele transmitiu a todos os seus descendentes a culpa desse pecado; os homens possuem uma predisposição inata para o pecado, não são criaturas livres. A resposta ortodoxa a este argumento é, obviamente, que Cristo morreu para tornar os homens livres, mas, por estranho que pareça, este facto parece não impressionar muito os calvinistas. As teocracias por eles construídas, cidades-estados ou comunidades inteiras governadas por homens piedosos arvorados em líderes, sempre se caracterizaram por uma atmosfera soturna, uma espécie de morrinha do espírito. Veja-se o Massachusetts de Cotton Mather, a Genebra do próprio João Calvino. Para eles, era um sinal de depravação católica deixar que fossem os homens a traçar o seu próprio destino. Daí o fecho dos bordéis (que os países católicos não encerram), a proibição de frivolidades como as peças teatrais ou a literatura para entreter, a pena de morte para o adultério. Os homens são pecadores, recusam-se a evitar o pecado (e porque haveriam de o evitar, já que estão predestinados a acabar no Inferno ou no Céu, façam o que fizerem?), é preciso obrigá-los a serem bons. E, mais ainda, as mulheres, filhas da traiçoeira Eva. O calvinismo está repleto de reforços negativos.

Não pretendo fazer deste texto uma prelecção sobre teologia elementar, e não é minha intenção, seguramente, encarar o mundo contemporâneo segundo o prisma da fé que herdamos dos nossos progenitores. Quero apenas mostrar que certos termos que pedimos de empréstimo à teologia são válidos numa abordagem secular dos nossos problemas. Sendo eu uma pessoa cuja fé religiosa tem vindo a vacilar há já 40 anos, seria hipocrisia da minha parte afirmar que, para pôr termo à guerra e purificar os rios poluídos, os homens deveriam voltar-se de novo para Deus. Estou apenas a sugerir que a religião, por um lado, e, por outro, as disciplinas seculares ou antropocêntricas como a filosofia, a psicologia e a sociologia têm algo em comum, a saber, a consciência do facto perene da infelicidade humana. E parece-me que não somos obrigados a pôr de parte certas palavras de proveniência arcaica - como "bem", "mal", "livre arbítrio", mesmo "pecado original" -, substituindo-as por uma terminologia pseudocientífica, só porque derivam de uma abordagem do homem centrada em Deus.

"Dissemos branco o tabuleiro de xadrez, agora negro", declara o bispo Blougram no poema de Robert Browning.(2) Por outras palavras, uma visão optimista da vida humana é tão válida como uma perspectiva pessimista. Mas a que vida nos estamos a referir - à da raça inteira ou à do fragmento insignificante desse todo a que cada um de nós chama "eu próprio"? Considero-me um optimista em relação ao homem: penso que a raça humana irá sobreviver, penso que o homem irá solucionar os seus grandes problemas - de forma lenta e dolorosa, quiçá - pelo simples facto de ter consciência deles. Quanto a mim próprio, posso apenas dizer que estou a ficar velho, tenho a vista cansada, os dentes causam-me imensos incómodos, não posso comer nem beber tanto como em novo, aborreço-me com frequência cada vez maior. Esqueço-me dos nomes, o meu cérebro trabalha devagar, sinto frémitos de inveja diante dos jovens e de raiva contra o meu próprio declínio cada vez mais inevitável. Caso tivesse uma fé ardente na sobrevivência da alma, ser-me-ia fácil mitigar esta tristeza ocasionada pela velhice. Mas perdi esta fé, e é pouco provável que a recupere. Às vezes, sinto desejo de uma aniquilação imediata, mas o impulso de permanecer vivo vem sempre à tona. Há consolações - o amor, a literatura, a música, a vida colorida da cidade meridional onde passo a maior parte do meu tempo -, mas são muito incertas. Há uma consolação ainda maior e mais duradoura, que é o facto de eu ser livre de escrever o que muito bem entendo, de não ter de cumprir horários rígidos, de não ser obrigado a tratar nenhum homem por "meu senhor" nem ter de obedecer a ninguém com medo das consequências. Mas uma liberdade assim gera os seus próprios constrangimentos: sinto-me culpado quando não trabalho, sou o meu próprio tirano. As coisas que agora possuo faziam-me mais falta quando era jovem. Lembro-me sempre do aforismo de Goethe: "Presta bem atenção ao que desejas na juventude, pois ser-te-á dado na meia-idade."
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[A condição mecânica, Anthony Burgess, 1973, in Ípsilon, 14.12.2012]