zona de conforto


[Stalker, Andrei Tarkovsky, 1979]


É verdade que cada Estado tem o direito de regular os fluxos migratórios e implementar políticas ditadas pelas exigências gerais do bem comum, mas assegurando sempre o respeito pela dignidade de cada pess
oa. O direito que a pessoa tem de emigrar – como recorda o número 65 da Constituição conciliar Gaudium et spes – conta-se entre os direitos humanos fundamentais, com faculdade de cada um se estabelecer onde crê mais oportuno para uma melhor realização das suas capacidades e aspirações e dos seus projetos. No contexto sociopolítico atual, porém, ainda antes do direito a emigrar há que reafirmar o direito a não emigrar, isto é, a ter condições para permanecer na própria terra, podendo repetir, com o Beato João Paulo II, que «o direito primeiro do homem é viver na própria pátria.»


Bento XVI, Migrações: peregrinação de fé e de esperança


Em todos os domínios e sob todos os aspectos, é preciso desconfiar do emprego irreflectido, e mais ainda, do emprego deliberado das palavras em voga: elas contribuem frequentemente para criar as realidades que pretendem designar ou descrever.

Marc Augé, Para uma Antropologia da Mobilidade












A realidade é o que é: uma besta. É-o porque nos desfaz todo e qualquer sistema filosófico ou de pensamento, por mais sólido, fechado, monolítico que seja, sobre o qual se erguem todas as nossas mais profundas crenças. E as ideologias políticas do ocidente. E fá-lo com alguma violência.
Só um optimista avoado, para quem tudo é bom excepto o pessimista, ou um pessimista cavernícola, para quem tudo é mau excepto ele mesmo, podem aderir sem censura à realidade ou repulsá-la como se dela não nos chegassem também o que parecem milagres da natureza humana. Se a realidade é palco e fonte de violência, dor, sofrimento, também o é de beleza, alegria e consolo.
Uma virtude da crise – krisis – é colocar em questão o(s) olhar(es) sobre o real. Possibilidade para desinstalarmos e nos desinstalarmo-nos as certezas que até aqui nos trouxeram. E antes do deflagrar da crise todos nós, ocidente, éramos certeza. E optimismo. A História tinha terminado. O amanhã cantaria liberdade para todos.
Liberdade condicionada pela televisão. O preço a pagar seria esse: enxurradas de informação sempre envolvida por imagens sedutoras e reprodutíveis ao infinito. Imagens que evocavam uma realidade real mas não passavam de fabricações, efabulações, manipulações, simulações (Baudrillard) do real. Imagens desprovidas da espessura das coisas que, no concreto, acontecem e sucedem. Imagens de imagens que abriam o desejo de mais imagens. A sedução é sempre um jogo terrível. Esquivo. Equívoco. Aisthesis, estética, anastesia. Adormecemos debaixo da nuvem da estetização generalizada da vida. Uma estetização kitsch, como todo o kitsch, desprovida de profundidade ética, onde a beleza significa a mera aparência das coisas, a superfície das coisas. E ainda que seja na pele, pela pele, que primeiro tocamos o mundo e ele nos toca, pele sem músculo é só um tecido de células mortas. Agora não há cirurgia nem glossy que amacie a pele morta. Nem apague as sombras da luz glamourosa das imagens de outrora. Recordemos as metáforas dos discursos, teorias e crítica, arquitectónicas que bebiam dos manuais de medicina cirúrgica.
Multiculturalismos, transculturalismos, velocidade, comunicação global, abolição de fronteiras, fim de limites. A algaravia pós-moderna, académica e mediática, os sacerdotes da razão determinista e do insano optimismo antropológico ruíram. A realidade não deixou de ser realidade e o homem não deixou de ser homem. E surge aqui a possibilidade de contrabalanço proveniente das sombras da razão. Ou por outra, de matrizes estéticas e ideológicas fundadas na matéria irracional do homem. E, por consequência, o encerrar do homem e de sociedades em exercícios de recuperação de mitos e elaborações sobre um momento original, primeiro e limpo (fantasiosos e imaginários e perigosos), tanto de comunidades como de indivíduos. O cosmopolita só o poderá ser a partir de uma raiz. O cosmopolitismo só o poderá ser como abertura ao outro real. Ao outro e a toda a toda a sua (humana, demasiado humana) fragilidade, bem e mal. Em toda a sua realidade, sem a fantasia multicultural da bondade intrínseca no outro.


O problema que daqui decorre para uma pensamento espacial e arquitectónico é, exactamente, o do permanente desenho, redesenho, dos limites e das fronteiras. As fronteiras não se fazem e desfazem: redesenham-se. Eventualmente, o único problema intrínseca e verdadeiramente arquitectónico. Uma parede é uma parede é uma parede. Como e onde a abrir? Por onde deixar entrar o ar a luz e o vento? E o mundo.