sejamos imperialistas, cadê?*



Império global


É raro o mês em que não leio um livro ou vejo um filme que não me dê vontade de declarar guerra aos ingleses (aqueles que conheço pessoalmente são excelentes pessoas; poupá-los-ia na guerra a travar). O casus belli que recentemente me encheu de fúria assassina tem que ver com a minha profissão de professor de História da Arquitectura: é um calhamaço de 900 páginas intitulado A Global History of Architecture. Foi publicado pela primeira vez há uns anos, mas saiu agora uma edição nova muito remodelada. O editor é norte-americano e os três autores são professores nos EUA: um sino-havaiano-americano, um suíço-americano e um indiano-indiano. Não sendo ingleses, os autores servem a glória do defunto império britânico com um descaramento que não dá para acreditar. 

É pena, porque o livro assenta numa ideia interessante: está organizado em "fatias" temporais começando em 3500 a.C. e comparando todas as arquitecturas dentro de cada período (agora já não se escreve a.C. ou d.C.; escreve-se BCE, "before the current era", ou CE, "current era"; trata-se da estupidez política em todo o seu esplendor: como se o modo de contar o tempo histórico que todos usamos tivesse sido inventado por um senhor chamado Corrente). 

Apesar de a ideia-base do livro ser boa, a sacanagem começa logo no princípio: nas 20 páginas dedicadas às "Primeiras Culturas", anda-se pelo Crescente Fértil, a China, o rio Indo, e chega-se por fim à Europa, que então era um sítio primitivo e não vale mais que uma página e meia. Todavia, desta página e meia, quase dois terços do texto e todas as ilustrações são dedicadas à Inglaterra. O resto afina pelo mesmo tom: a "fatia" correspondente ao ano 1000 tem 50 páginas, 13 para a Europa, das quais duas para a França, três para a Itália e três para a Inglaterra. Das 30 páginas dedicadas ao Renascimento europeu, a inglaterrinha tem direito a 10% (três páginas), enquanto à arquitectura dos espanhóis na Europa e no resto do mundo se concedem cinco (os portugueses só aparecem em meia página a propósito das fortalezas africanas). Perto da actualidade o desequilíbrio entra em vertigem: nos séculos XVII e XVIII, a arquitectura inglesa tem o mesmo número de páginas que toda a gente na Europa, com excepção da Itália, e o século XIX é praticamente apenas inglês (a escolha em matéria de cidades coloniais é simples: houve três: Calcutá, Bombaim e Deli). Finalmente, a primeira metade do século XX tem 60 páginas e mais de 30 vão para as arquitecturas inglesa, colonial inglesa e norte-americana. 

A culpa é nossa, os da Europa do Sul (incluindo os franceses), que não conseguimos "vender" a nossa História? Não. O livro é uma manifestação do poder imperial: foi feito para que toda a gente pense em inglês e para que toda a História passe obrigatoriamente pela Inglaterra e os EUA. É também para isso que recrutam professores de todo o mundo: o poder anglo-saxónico é mais digestível, se for engolido com caril.

Espero ansiosamente por uma história global da arquitectura escrita por brasileiros.



[Paulo Varela Gomes, Público, 5.11.2011]
    

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó 
O que quer 
O que pode esta língua?  [Língua, Caetano Veloso, 1981]