paisagem sem fundo






Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.


Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.


Devagar... as janelas olham.


Eta vida besta, meu Deus.





por Tom Zé

[Cidadezinha Qualquer, Carlos Drummond de Andrade, in Alguma Poesia, 1930]






Alguma Poesia, recolha de poemas de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1930, é também um livro de cidades e espaço. Desde logo o espaço da irrupção do modernismo brasileiro – segunda geração – e, dentro desse espaço, o da singular voz de CDA.
Os poemas cantam as paisagens da Minas Gerais natal de CDA, as cidades desse estado interior, as paisagens quotidianas através das quais o poeta se lançava a definir-se a si mesmo. Da viagem à França, Rússia, Inglaterra, há o regresso ao Brasil trazendo o desprezo pelo brasileiro que suspira pela europeização acabando na americanização. A machina, o cinema dos heróis da Paramount, o automóvel, todo o projecto optimista do modernismo na afirmação de um cântico que adquiria sentido no espaço e nas cidades brasileiras. Depois da primeira geração ter debatido regionalismos e internaconalismos, enquanto o Palácio Capanema se encontrava em execução, CDA abre-nos à nova paisagem sem fundo do Brasil.






[Ipanema, Rio de Janeiro]


Foi no Rio.
Eu passava na Avenida quase meia-noite.
Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis.
Havia a promessa do mar
e bondes tilintavam,
abafando o calor
que soprava no vento
e o vento vinha de Minas.


Meus paralíticos sonhos desgosto de viver
(a vida para mim é vontade de morrer)
faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente
na Galeria Cruzeiro quente quente
e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,
nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso.


Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas
autos abertos correndo caminho do mar
voluptosidade errante do calor
mil presentes da vida aos homens indiferentes,
que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram.


O mar batia em meu peito, já não sabia no cais.
A rua acabou, quede árvores? a cidade sou eu
a cidade sou eu
sou eu a cidade
meu amor.


[Coração Numeroso, Carlos Drummond de Andrade, in Alguma Poesia, 1930]








[Av. Rio Branco, Rio de Janeiro]


Fios nervos riscos faíscas.
As cores nascem e morrem
com impudor violento.
Onde meu vermelho? Virou cinza.
Passou boa! Peço a palavra!
Meus amigos estão todos satisfeitos
com a vida dos outros.
Fútil nas sorveterias.
Pedante nas livrarias...
Nas praias nu nu nu nu nu nu.
Tu tu tu tu tu no meu coração.


Mas tantos assassinatos, meu Deus.
E tantos adultérios também.
E tantos tantíssimos contos-do-vigário...
(Este povo quer me passar a perna.)


Meu coração vai molemente dentro do táxi.


[Rio de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade, in Alguma Poesia, 1930]