abismos#3


[Storm King' Wall, Andy Goldsworthy, 1998]


A contingência pura do meu lugar


Não se pode dar o caso de eu não ter um lugar, pois estaria então, relativamente ao mundo, em estado de sobrevoo, e o mundo já não se manifestaria de nenhuma maneira (...). Por outro lado, embora este lugar actual possa ter-me sido atribuído pela minha liberdade («vim» para aqui), só pude ocupá-lo em função do que ocupava anteriormente e seguindo caminhos traçados pelos próprios objectos. E este lugar anterior reenvia-me a um outro, este a outro ainda, e assim sucessivamente até à contingência pura do meu lugar, ou seja, até aquele dos meus lugares que já não reenvia a nada de mim: o lugar que o nascimento me atribui. Realmente, de nada serviria explicar este último lugar por aquele que a minha mãe ocupava quando me deu à luz: a cadeia quebrou-se, os lugares escolhidos pelos meus pais não poderiam valer de forma alguma como explicação dos meus lugares (...) Nascer é, entre outras características, tomar o seu lugar, ou melhor, de acordo com o que acabamos de dizer, recebê-lo.


[O Ser e o Nada, Jean-Paul Sartre, 487]


via André Barata





Mas poder-se-á pensar esse lugar, em razão da nossa não-escolha, como um lugar que nos ocupa ainda antes de a ele chegarmos via essa sucessão de lugares que vamos ocupando? Nascer, portanto, a dádiva maior, o lugar que nos é gratuitamente dado, que existia antes de nós, e do qual somos precisa e permanentemente reenviados?