[Sforzinda, Filarete, 1464] Não que o escrutínio da opinião pública seja essencial ou decisivo, mas é relevantíssimo para qualquer prática artística, científica ou política. Quer por da sociedade decorrer alguma da legitimidade moral que sustenta essas práticas, quer pelos efeitos dessas práticas no seio da comunidade. Se tudo correr bem, do acordar ao deitar, somos rodeados por arquitectura. Porque também uma prática social, por ocupar cada vez mais indivíduos no seu cada vez mais complexo processo de produção, por consumir recursos cada vez mais vastos, muitos deles património comum, a sua acção é sensível a qualquer indivíduo. A arquitectura adquire maior visibilidade, literalmente, por ser inescapável. Ainda para mais numa época em que a arquitectura se torna refém de sistemas (pouco) éticos, (ainda menos) estéticos, que se representam na aparência da democracia mediática, é de todo o interesse dos arquitectos ouvirem não apenas os pares e/ou privilegiados clientes, mas uma, ainda que frágil e esparsa, opinião pública. Foi assim que li O elogio de um arquitecto, de Carlos do Carmo Carapinha. Por não provir de alguém da corporação, por apresentar argumentos eruditos e ilustrados no conhecimento genérico da História recente da disciplina e, sobretudo, por o texto encerrar os paradoxos com que a disciplina se debate ao tentar-se explicar à sociedade. E não me refiro ao erro inicial de atribuir à arte (pintura, escultura) o estatuto supérfluo [luxos?] que faria as delícias da, também ela muito discutível, tese freudiana que deduz a produção artística de uma pueril sublimação do indivíduo sob efeitos do mal-estar na civilização. Convém assinalar que em estopa de fundo do texto está uma clara confusão entre o que é arquitectura e construção. É que se a arquitectura é, também, construção, o contrário nem sempre é verdade. Muito poucas vezes, até. São palavras do autor que o confirma quando invoca o percurso por Telheiras (ou Massamá); ou quando observa, ao longe, a arquitectura de certos dormitórios das zonas metropolitanas de Lisboa e Porto, certamente inspirados na arquitectura do Leste Europeu (triste, deprimente, monocórdica, condenada a uma decadência indigente), por sua vez filha (bastarda?) do modernismo do Sr. Corbusier ou do Sr. Gropius; ou quando observa os blocos habitacionais em Brasília, inspirados pela «ideologia» do planeamento urbano, forjada na Carta de Atenas de 1933. Não que não paire o espectro destes arquitectos sobre as paisagens que o texto descreve: ecos distantes e distorcidos; adaptações incultas; citações equivocadas; imagens deslumbradas; mas sobretudo o ‘espírito do tempo’, o científico, que decide a maioria das opções culturais do último século, espírito do qual a arquitectura foi, em determinada circunstância, a modernista, uma poderosa força propagandista - mas ainda que muitos os deméritos, insuficiências e inadequações dos modernos, pelo menos propôs-se devolver, pela arquitectura, e pela primeira vez na História, a felicidade a todos os indivíduos. Provavelmente estas paisagens terão pouco do contributo dos arquitectos e quando isso suceda, não esqueçamos, é um contributo escrutinado pelo poder político, via autarquias, por exemplo, logo, e pelo menos desde 1974, em Portugal, para me reportar directamente à realidade que o texto reclama, legitimado pelo regime democrático. Correndo o riso de apresentar um argumento que possa se lido à luz de um mero e egoísta interesse corporativo, e desconhecendo o rigor dos números, creio andar à roda dos 10% o volume de construção, em Portugal, que tenha, de facto, feito uso de arquitectos. Não será, portanto, essencialmente da culpa dos arquitectos ou da arquitectura o caos em que se encontra as nossas cidades. Nesta atmosfera, justificável, de desconfiança em que foi lavrado o texto, mais desconfiança me levanta o exemplo de boa prática de que o Carlos do Carmo Carapinha se socorre para nos apresentar uma possível redenção dos arquitectos e da arquitectura. Não porque seja João Maria Trindade, ou a arquitectura de João Maria Trindade, mas porque é esta uma prática que recusa a divergência [cito o Pedro Machado Costa] de uma genealogia que tem trazido, em muito, a arquitectura aos impasses indiciados no texto. Grosseiramente, o que distinguirá o trabalho de João Maria Trindade do de Falcão Campos, do dos Aires Mateus, do de Inês Lobo, do de Bak Gordon, do de Gonçalo Byrne, do de Carrilho da Graça, (e das réplicas, ressonâncias, ecos, distorções, citações, espalhadas pelo território em temerosas paredes brancas clean), apenas para irmos directamente à realidade, a produção portuguesa hediorna, que o post induz? Não que estes não sejam nomes que não tragam novas luzes, ou indícios, ao problema da arquitectura. Não que não sejam arquitectos que reflictam ponderada e sofisticadamente sobre os temas que, livre e legitimamente, escolhem. A dúvida é se esses temas serão, ao fim de contas, os mais relevantes para responderem com mais precisão e força às questões que Carlos do Carmo Carapinha sugere. Não discuto as afinidades electivas, legítimas, repito, dos arquitectos acima referidos. O que discuto é a capacidade dessas arquitecturas apresentarem e representarem outro mundo que o do design autoritário e asséptico, desligado de significados e articulações à realidade, numa autoreferência infinita à cada vez mais ensimesmada arquitectura que reverencia indulgentemente os nomes modernos que o texto fustiga. Eis o paradoxo. Desconheço a obra de Auberon Waugh, tão pouco de que pressupostos se lança para lançar essa boutade. Arrisco até que se inscreva numa tradição que Scruton e o mais mediático e superficial de Botton reivindicam: a de uma nostalgia que recusa, por medo ou insegurança ou cautela ou parcimónia, enfrentar a galáxia de problemas que se levantam sobre as cidades e as arquitecturas, para lá do refúgio acolhedor e melancólico do country side. Em todo o caso, não se recusa, tanto aos nostálgicos, como aos arquitectos aqui ditos, pelo menos, a tentação da beleza. Ainda que insuficiente e consequente de valores tíbios. |
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- | João Amaro Correia / 11.12.10
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