imitação das cidades




Atrasado, chego a este depoimento do El País, Lisboa, la capital del vacío. Enquanto o vereador Salgado vai enunciando as causas do vazio lisboeta, sem novidade ou notícia, propõe, em remate, um futuro feito de Erasmus. As causas e as implicações desta política são óbvias, ainda que não evidentes.
Se, como assegura o jornalista, apesar da decadência a Lisboa señorial ainda mantém la belleza de la ciudad, esta esperança deve-se não tanto ao cuidado com a construção humana mas mais con sus siete colinas y el río Tajo omnipresente, que sigue siendo un poderoso imán para el visitante extranjero.
A terciarização acelerada, a especulação imobiliária – essa promessa nineties de rentabilidade e segurança – instrumentos jurídicos e fiscais inadequados, políticas erradas e demagógicas na sua retórica mas sustentadas pela maior selvajaria do mercado menos regulado do nosso pobre-tardo-capitalismo-socialista, povoaram Lisboa de espectros. A Baixa entregou-se ao abandono do vazio ao ritmo imposto pelo recuo das sedes sociais das instituições, outrora sólidas, que as ocupavam - restam alguns ministérios, por ironia o poder que tem tido menos relevância na crise que atravessamos. O comércio ressentiu-se, por actos e omissões, ainda para mais quando é duvidosa a vocação da Baixa como área habitacional. Quem diz Baixa diz o eixo que se desenvolve pela Av. da Liberdade, Av. da República, até ao Campo Grande. O afastamento das classes médias do centro da cidade, tanto pelas razões acima aludidas quanto pela promoção de uma cultura do individualismo automobilístico, do deslumbramento pela ‘casa nova’, enformaram a cidade à imagem de um donut: um imenso buraco ao centro.
A proposta Erasmus do vereador Salgado, ou um tipo de políticas fora da contextualização de uma rede de cidades regionais e globais, mais não servirão que paliativos à grave enfermidade que experimentam hoje as cidades. Mais a mais, sendo a condição urbana em Portugal resultante do êxodo rural do pós-guerra e não uma experiência cultural e historicamente consolidada, tornam-se ainda mais frágeis e incompreensíveis este tipo de políticas urbanas. Erasmus, ou capital mundial de congressos, ou a aposta no turismo, tudo hipóteses que pretendem aproximar a cidade de Lisboa aos fluxos globais de capital que têm determinado o crescimento explosivo das cidades e, paradoxalmente, a degradação da condição urbana global.
Os fluxos de capitais são, por definição, predatórios das cidades porque desterritorializados: uma companhia fixa-se em determinada cidade, aluga uns escritórios anónimos numas torres de simbolicamente poderosas e, quando caso disso, deslocalizaliza-se para outra partida do mundo em que a rentabilidade e segurança sejam melhor asseguradas.
O que este tipo de soluções nos diz é apenas da natureza da localização geográfica de Lisboa: bom clima, porta de entrada na Europa, cruzamento intercontinental. Nada nos diz do que poderá ser Lisboa num contexto europeu e global.
Resulta daqui a construção de uma cidade para o passar, não para o estar, menos ainda para o ser. Porque as relações e os vínculos sociais são os que directamente fixam o desenho urbano e, ao mesmo tempo, dessa materialização se desenvolvem, porque a cidade é, por definição da polis democrática, o lugar da emancipação individual sem a sujeição a uma superestrutura ditada pelo poder. O sujeito deste tipo de políticas urbanas é um sujeito nómada, que está na cidade sem estar. A casa deste sujeito reveste-se de um carácter excluído do habitar, cheia de artefactos leves e banalizados.
E, ainda no contexto de perda de poder pela política e de predação do mercado global, geram-se equívocos que danificam inexoravelmente a ordem do que é público e do que é privado. As parcerias público-privadas, mais não serão que o expediente com que o enfraquecido poder político, na ansiedade de realizar agora rendimentos que serão pagos no futuro, cede parcelas do espaço público a entidades privadas através de mecanismos muitas vezes fora da legalidade e, muito menos, da legitimidade democrática, sendo esta a maior e mais nefasta evidência da quebra do vínculo democrático entre o cidadão e o espaço da cidade.
Na era digital a reconfiguração do espaço público e das cidades é um fenómeno global, veloz e em permanente mutação. Só daqui se pode defender a cidade.