estética restritiva


Rua de Santa Luzia, Rio de Janeiro

Falar a mesma língua e não falar a mesma linguagem. Uma primeira perplexidade ao olhar de um estrangeiro indisciplinado releva dos incontáveis contrastes. E se já vínhamos avisados pelo cliché à volta de uma sociedade contrastante mas diversa, os contrastes revelam-se mais subtis e mais lentos. Mas não menos violentos. Por exemplo a(s) arquitectura(s).
As imagens construídas e mitificadas de um modernismo tropical que influenciara o curso da História da disciplina no curso do séc. XX revelam-se cruelmente irreais. Se a cada esquina e em cada quadra se denunciam princípios que tenham decorrido do Vers Une Architecture, os mesmos manifestam-se de modo canhestro, desajeitado, quando não ideologicamente perversamente interpretados. Mas ainda assim, e percebe-se no uso da linguagem corrente na cidade, termos como pilotis ou brise soleil são reconhecidos e usados não apenas por camadas ilustradas na disciplina, mas por classes – o discurso classista é aqui uma evidência - aparentemente menos versadas num discurso disciplinar. Vocábulos iminentemente técnicos, de uso restringido aos arquitectos, são aqui quase vox populi.

Uma primeira tentação e intuição, e no desconhecimento dos factos, é atribuir esta disseminação lexical ao combate público que terá sido o transplante da capitalidade do Rio de Janeiro para Brasília. Ou de como a invenção de uma cidade – talvez ainda não uma cidade, talvez por enquanto um parque temático de negócios e política, que é Brasília – foi anunciada e negociada em espaço público, e de como esse debate fez verter para a linguagem comum termos que à época seriam os da vanguarda disciplinar. Em certo sentido, isto é o concretizar de uma das vias da utopia modernista: a democratização da arquitectura e, radicalizando, a inclusão do cliente – não enquanto indivíduo, mas enquanto classe – no próprio debate do projecto.

Mas se grande parte das arquitecturas são sustentadas por pilotis o que se lhe apõe é a violência dos gradeamentos. O chão solto, livre, solo de todas as possibilidades, proporcionadas pela ideia modernista – devidamente zonada, claro – é violentamente interrompido pelas grades metálicas. E como que para mitigar essa crueldade consequência do terror que vem de cima, da favela, o gradeamento, que se manifesta como se fora o embasamento corrido de todos os edifício de todas as ruas, é executado em grossos perfis de secção circular em alumínio castanho. A liberdade radical outrora sonhada, esmagada às mãos do serralheiro que viu o seu negócio prosperar à sombra da violência e do medo que se foram instalando. A casa é cercada, a rua é sitiada.
O regresso da rua, por contraste com o chão livre e cartesianamente infinito para o qual os edifícios teriam sido pensados, é feito não pela via ideológica e da revisão do cânone da Carta de Atenas, mas pelo corte abrupto e ensanguentado com o mito do bom selvagem que, ironia da história das ideias, terá sido formulado a partir dos primeiros relatos que chegaram à Europa do acolhimento, amabilidade, convivialidade, das civilizações aqui encontradas, em São Sebastião do Rio de Janeiro.

Rua Visconde de Pirajá, Rio de Janeiro