krysis


[Uccellacci e uccellini, Pier Paolo Pasolini, 1966]

A casa de Deus está assente no chão
Os seus alicerces mergulham na terra
A casa de Deus está na terra onde os homens estão
Sujeita como os homens à lei da gravidade
Porém como a alma dos homens trespassada
Pelo mistério e a palavra da leveza

Os homens a constroem com materiais
Que vão buscar à terra
Pedra vidro metal cimento cal
Com suas mãos e pensamento a constroem
Mãos certeiras de pedreiro
Mãos hábeis de carpinteiro
Mão exacta do pintor
Cálculo do engenheiro
Desenho e cálculo do arquitecto
Com matéria e luz e espaço a constroem
Com atenção e engenho e esforço e paixão a constroem

Esta casa é feita de matéria para habitação do espírito
Como o corpo do homem é feito de matéria e manifesta o espírito

A casa é construída no tempo
Mas aqui os homens se reunem em nome do Eterno
Em nome da promessa antiquíssima feita por Deus a Abraão
A Moisés a David e a todos os profetas
Em nome da vida que dada por nós nos é dada

É uma casa que se situa na imanência
Atenta à beleza e à diversidade da imanência
Erguida no mundo que nos foi dado
Para nossa habitação nosssa invenção nosso conhecimento
Os homens constroem na terra

Situada no tempo
Para habitação da eternidade

Aqui procuramos pensar reconhecer
Sem máscara ilusão ou disfarce
E procuramos manter nosso espírito atento
Liso como a página em branco

Aqui para além da morte da lacuna da perca e do desastre
Celebramos a Páscoa

Aqui celebramos a claridade
Porque Deus nos criou para a alegria


[A Casa de Deus (está assente no chão); Sophia de Mello Breyner Andresen, Páscoa de 1990 ]


Ouvir dizer, como disse o Pe. Tolentino Mendonça, da arte e da fé cristã como duas feridas abertas no coração do homem impõe-me a ideia do limite. A ideia do homem que não se basta a si mesmo, não se apazigua com o que vai conhecendo, sendo já, ou ainda, o conhecimento uma ideia de extensão da sua própria finitude. Haver um derrube da ideia da linguagem como ideia do mundo é a pretensão arriscada da poesia, do entendimento das coisas, e traduzir as coisas em nomes (ou pedras) será o como, pelo trabalho, poderá fazer o homem estender ou alargar a sua limitação.
Da fé, evidente, não se sustenta na ideia de gnose. Fé pressupõe um querer (irracional), um desejo (arcaico), do absoluto. Da arte, enredada no concreto da matéria e das ideias, pressupõe-se a visibilidade e a tentação desse absoluto através da escassez que nos é imposta pela carne. «Entre o Absoluto e a Irrelevância.»
Pensar a arquitectura como obra de arte não será inédito, e não me inclinando para esta ideia, se esta ideia se aquietar na objectivação da arquitectura, poder ser, e sê-lo-á certamente mais operativa, se for uma ideia poietica aquela que aproxima a arquitectura à obra de arte. Portanto, uma aproximação no seu fazer-se - roubem-se os poetas, tornemo-nos reféns de Valéry: o «nome de tudo que se relaciona com a criação». O ser-no-mundo, activo e imperativo; um trabalho definido nas palavras de Bresson: «rendez visible ce qui, sans vous, ne pourrait être vu.»
Esta ideia é, na verdade, a que poderá atribuir algum sentido artístico à arquitectura. Um conhecimento que acumulado e sempre cumulativo para além do simples (não tão simples) conhecimento da mecânica da construção. O conhecimento dos limites do espaço, organizados por muros e fendas nos muros e tectos e chão, por um olhar fixo num horizonte maior que as tribulações quotidianas e a comodidade do presente.
A arquitectura, por definição (também) construção, recusa a ideia de puro conhecimento, se for este filiado na ideia de uma epistemologia pura. Inventar, definir, erguer limites e hierarquizá-los, desenhar na areia do tempo as linhas das quais se levantam os espaços convoca a ideia de technê. A aproximação, seu fazer-se, pela verificação das ideias e do conhecimento no mundo, da possibilidade da arquitectura como um conhecimento. Um muro, uma limitação, inquietação permanentemente à procura de se expandir. Seja esse movimento, ainda que ténue ou irrelevante, no (des)concerto do Universo, o lugar d’A casa de Deus [que] está na terra onde os homens estão.



para a Rita B.