a matéria dos lugares

Por isso os espaços recebem a sua essência dos lugares e não ‘do’ espaço.

Martin Heidegger, Construir, Habitar, Pensar


To put it bluntly [...] there [is] a certain incompatibility between the terms «cinema» and «Britain».

Fraçois Truffaut





[Peeping Tom, Michael Powell & Emeric Pressburger, 1960]


Importa referir o sentido do lugar que atravessa a cinematografia de Michael Powell. Com Emeric Pressburger, que lhe trouxe toda a capacidade técnica que então os estúdios da UFA ostentavam, pode-se quase julgar os filmes de Powell pela desocultação das características dos lugares onde as narrativas têm, justamente, lugar.
Fora da ortodoxia do cinema inglês do pós-guerra, da apologia de um cinema ‘realista’ que afirmasse – denunciasse? – as condições, contradições, da vida da working class, Powell sugere-nos um cinema de carácter tipicamente inglês: a fleuma britânica que o impede de bruscos movimentos da câmara, da emotividade excessiva, da fantasia ilusória. Entre dois mundos, o da realidade e o da possibilidade, como dois modos de ser que convivem num mesmo espaço interior. Ou num mesmo espaço cinematográfico. E a narrativa, sempre sustentada numa realidade – verosimilhança? -, um lugar, ambiente, controlado pela câmara, personagens e história, sofre um revés, twist, que, e para o que interessa, pode muito bem ser possibilitado pela paisagem. A paisagem que não é a topografia ou a geografia dos sítios mas o espíritos que neles habitam. Uma cultura.
Dois exemplos límpidos: I Know Whre I’m Going [1945] e o imenso Black Narcissus [1947]. Em I Know Whre I’m Going Joan seguia tranquilamente, ou se quisermos com alguma ansiedade já que se preparava para casar, quando uma tempestade a faz refém obrigando-a a permanecer na margem, para ela e até ao que se sucederia, errada. E o que sucede, para além do óbvio encontro com MacNeil, é a desocultação e a revelação da força de um lugar. Kiloran, a ilha, destino da viagem e da vida de Joan torna-se inacessível. Próxima, meia-hora de barco, mas distante pela conjugação dos elementos. Próxima, porque é o seu desejo ansioso lá querer chegar para o seu próprio casamento – um abastado industrial metalúrgico que passa na ilha; ‘importa o salmão em vez de o pescar ou comprar aos nativos’; ‘constrói uma piscina, em vez de se banhar nas ondas do mar ou nos rios’ -, distante, pois lentamente e não sem a loucura a atravessar, se a percebe que aquele lugar é, vive, em MacNeil. MacNeil, Laird of Kiloran, nascido e criado naquele lugar, destinado a ser aquele lugar que existe sempre onde ele está, quaisquer que sejam as circunstâncias ou a parte geográfica do mundo. MacNeil é Kiloran, Kiloran é MacNeil. Powell e Pressburger fazem Joan – abastada e caprichosa menina da cidade que não distingue ‘a diferença entre ser pobre e não ter dinheiro’ – mergulhar nas fábulas escocesas que decorrem daquela geografia mágica e tempestuosa, levando-a ao (re)conhecimento do que são realmente os seus desejos.

[I Know Where I'm Going, Michael Powell & Emeric Pressgurger, 1945]

Em Black Narcissus é a Sister Clodagh, que recusa a vida na metrópole e viaja até à orla do Império Britânico, nos Himalaias, e, num penhasco alto atravessado pelo vento, propõe-se erguer na comunidade de Mopu um ambiente controlado que lhe segurasse, apesar de tudo, as memórias de que ela própria se constrói. O combate é aí. Nessa falha geológica que onde se contrasta o poder dos lugares com a vontade humana em ultrapassá-los. A tragédia é iminente. E sucede na maravilhosa sequência em que Deborah Kerr (sempre inocente, digo), se encontra total e fatalmente possuída pelo ‘espírito do lugar’. O vento, o vento, o penhasco alto. E talvez haja aqui qualquer coisa que nos redima do espaço modernista.

[Black Narcissus, Michael Powell & Emeric Pressburger, 1947]

Mas nem só da colisão entre mundos tratam Powell e Pressburger. A ambiguidade – ignorância – com que representamos o mundo é um dos elementos centrais e paradoxais dos filmes. O ‘olho’, o ‘mapa’. O olho é tema recorrente: é o redemoinho das águas de Kiloran, é a camera obscura em A Matter Of Life And Death [1946], é a deformação do olho pela lente em Peeping Tom [1960], são os instrumentos do olhar em The Battle of the River Plate [1956]. E a cartografia desse olhar, sempre representada por mapas que nos situam, que nos localizam, embora saibamos que eu é na ambiguidade que, de facto, Powell nos situa. Como na fantasia cósmica de A Matter Of Life And Death - que nos intriga pela realidade inverosímil, loucura real - que abre com travelling pelo Universo, cientificamente narrado, para nos trazer ao ponto azul que brilha do espaço, a Terra, onde Peter Carter, por um erro do contabilista do céu, se vê num julgamento que lhe permita permanecer neste lugar. Neste mundo. E Powell como Peter Carter, por amor. Ao cinema.

[A Matter Of Life And Death, Michael Powell & Emeric Pressburger, 1946]