Avisos importantes para a vida espiritual:

Praça de São Pedro | Bernini / 1675







A "Imitação de Cristo" causou e ainda causa nervosismo em não-cristãos e cristãos. Muitos não-cristãos lamentaram a maneira ríspida como Tomás de Kempis trata os nossos desejos, as nossas sensações e a nossa ciência. O livro seria um bom exemplo daquilo a que Friedrich Nietzsche famosamente chamou o ideal ascético, e que acusou de arruinar a nossa saúde. Muitos teólogos cristãos só conseguem hoje admirar relutantemente o livro que, no entanto, muitos milhares de outros cristãos quase imediatamente leram e admiraram. Queixaram-se da versão minimal do cristianismo que ele apresenta: um cristianismo que desconfia das relações humanas («caridade, não familiaridade», I, VIII, 2), de onde estão quase ausentes as outras pessoas, mas a que Tomás chamou o cristianismo de um «espírito livre que não está preso a nenhuma desordenada afeição das criaturas» (III, XXVI, 1); e em qualquer caso um cristianismo de onde parece ter sido erradicada a filosofia, que brilhantemente e laboriosamente se tinha pouco a pouco tornado a aliada mais importante do Cristianismo ocidental durante a Idade Média.

Estas queixas sugerem uma versão da "Imitação de Cristo" que é ela própria uma versão empobrecida. Com efeito, a "Imitação de Cristo"está saturada de filosofia; não tanto de teorias filosóficas sobre o conhecimento, a mente, ou a ação humana, mas de uma teoria sobre aquilo que a filosofia não pode ou não consegue fazer, e nomeadamente de uma teoria sobre os limites da linguagem filosófica. Essa teoria será pessimista, mas não é menos filosófica por isso. Tomás de Kempis chama repetidamente a atenção para o problema do uso da filosofia na reflexão teológica; nisso se aproxima surpreendentemente de Nietzsche. Aconselha-nos a moderar o «excessivo desejo de saber» (I, II, 2); observa que «vale bem mais sentir arrependimento do que saber a sua definição» (I, I, 2); o seu propósito metodológico, como também diz, é o de «evitar as palavras a mais» (I, X). O grande historiador holandês Johan Huizinga falou, a este respeito, de Tomás como alguém «calado, introvertido, cheio de ternura pelo milagre da Missa e com uma perceção muito limitada da ajuda divina». Enquanto muitos dos seus contemporâneos, igualmente ou menos notáveis, tentaram corrigir diretamente «a administração da Igreja e a vida secular», Tomás nunca manifestou grande interesse por esses assuntos.

É o lado taciturno de Tomás, daquilo a que também Huizinga chamou «o ritmo monótono das frases que torna a "Imitação"parecida com o mar numa tarde de chuva», que nos permite perceber mais exatamente o que quer, para ele, dizer «imitação de Cristo». Aristóteles acreditava que as pessoas aprendem a agir corretamente por imitação. Muitos cristãos, porventura a maioria, entendem nesse espírito que a imitação de Cristo deve ser imitação das ações de Cristo, por exemplo, como descritas nos Evangelhos. Não é o caso de Tomás. A ideia de imitar as ações de Cristo parece-lhe suspeita, e a possibilidade de o fazer irrazoável. Em vez disso, a imagem que dá de imitação de Cristo é a de uma atividade silenciosa, conduzida a sós, numa espécie de colóquio mental com o próprio Cristo. De tal colóquio são exemplo principal os dois últimos livros da "Imitação".

Nesse colóquio mental com Cristo, no entanto, as perguntas que se fazem não servem para saber coisas. «Filho», observa Cristo secamente, «não sejas curioso» (III, XXIV, 1). Os objetivos da imitação não são imediatos e não proporcionam conhecimento: «Tu pedirás e nada obterás» (III, XLIX, 4). Ao contrário de outras tradições de exercícios espirituais em que é possível verificar os progressos, por exemplo os progressos cognitivos, que fizemos, muito pouco, para Tomás, depende daquilo que fizermos; e em qualquer caso tudo depende de Cristo.

Este modelo de instrução, de consolação e de exercício está profundamente ligado a uma invenção quase contemporânea deste livro. Trata-se da invenção da tipografia. A "Imitação de Cristo"terá sido escrita na segunda ou na terceira década do século XV, e terá primeiro circulado em cópias manuscritas; porém, a partir de 1471, sucederam-se as versões impressas. Antes do fim do século tinha sido traduzida para quatro línguas e tinha tido mais de cem edições. Hoje tem mais de duas mil. O seu êxito esteve sempre, por isso, ligado à tipografia e à possibilidade de um grande número de pessoas poderem comprar e ler livros. O facto está longe de ser trivial. Com efeito, existe uma relação profunda entre aquilo que para Tomás de Kempis é a imitação de Cristo – uma atividade silenciosa conduzida a sós – e a possibilidade e a ideia de leitura que tornou necessária a invenção da tipografia.

Os espíritos livres de fins do século XV eram também espíritos taciturnos e solitários. Na Europa, as pessoas habituaram-se gradualmente a falar a sós com os livros; e habituaram-se a ver essa atividade solitária como uma aprendizagem que afetava outros hábitos que tivessem. «O hábito», como disse Tomás, «vence-se pelo hábito» (I, XXI, 2); esse é, para ele, o princípio fundamental da imitação. Devemos a Tomás a ideia de que a possibilidade da leitura generalizada, mais que um modo de instrução, e mais que um modo de acesso direto à verdade da letra, é uma atividade que, na maneira como se desenrola, retrata a possibilidade de uma imitação de Cristo: em silêncio, em paz, e sem esperar respostas. Ao ler este livro, cada leitor vai assim, independentemente da sua vontade, encontrar-se na posição de que Tomás tanto fala, e na posição em que Tomás o quis colocar.


Miguel Tamen | In "Imitação de Cristo" (prefácio)