Arvo Pärt sobre o Canto Gregoriano

























O meu compositor favorito vivo é Arvo Pärt, que é também o compositor vivo mais tocado no mundo, pelo terceiro ano consecutivo.

Tenho quase todos os discos e partituras da sua música, fui abençoado com a presença do compositor nalguns concertos a que assisti, (incluindo a estreia mundial da peça In Principio, em Graz), e dediquei-lhe um conjunto de sete composições corais em honra do seu septuagésimo aniversário, às quais, em agradecimento me fez um telefonema a partir da Estónia e durante o qual conversámos cerca de 12 minutos – um dos momentos verdadeiramente importantes da minha vida de músico.

O que é valioso na sua música é a respiração da antiga espiritualidade religiosa e no entanto o seu idioma global, particularmente a linguagem harmónica, ser minuciosamente moderno. É óbvio que o compositor ama e acredita profundamente nas realidades com as quais lida e, consequentemente, trata cada palavra, cada frase, com intensa compreensão e sensibilidade. E isto não é menos verdade acerca dos seus trabalhos instrumentais, como a Quarta Sinfonia. Muitas vezes, nas suas partituras orquestrais, encontramos textos da liturgia eslava no meio de partes instrumentais, como se os violinos fossem um coro sem palavras a cantar ao Senhor - numa impressionante reinterpretação da ideia de ‘coro de cordas’.

Numa entrevista de 1978, pouco depois da estreia da sua primeira peça tintinnabuli, Ivalo Randalu perguntou-lhe: ‘Tomemos como exemplo os Tintinnabuli. O que espera descobrir ou encontrar aí? A tónica e a tríade; o que procura aí?’ Ao que Arvo Pärt responde:

Infinito e castidade… não sei explicar, é necessário conhecê-lo, é necessário senti-lo. É necessário procurá-lo, é necessário descobri-lo. É necessário descobrir tudo, não apenas o meio de o exprimir, é necessário ter a necessidade disso. É necessário desejá-lo, é necessário desejar ser assim. Tudo o resto vem por si próprio. Então, teremos ouvidos para o ouvir e olhos para o ver.

Poderemos enumerar vários argumentos sobre as qualidades da música de Pärt, mas o propósito deste artigo é deixar o compositor falar acerca de uma descoberta que considera decisiva na sua carreira: a sua descoberta do Canto Gregoriano e de como isso afectou profundamente o seu desenvolvimento artístico. E é inspirador ouvir este compositor, considerado um dos mais importantes artistas vivos, falar acerca da maior colecção de melodias da história da música.

Numa entrevista concedida a Martin Elste, em 1988, para a revista Fanfare:

O Canto Gregoriano ensinou-me que um segredo cósmico se encontra escondido na arte de combinar duas ou três notas. O que é algo que os compositores de doze notas desconhecem. A estéril democracia entre notas matou em nós qualquer sentimento vivo.

De uma conversa, em 1990, com Roman Brotbeck e Roland Wächtner, citado em Arvo Pärt in Conversation:

O Canto Gregoriano foi para mim o primeiro impulso [com vista a um novo começo]. Foi autêntico espanto. Não tinha ouvido esta música antes. E quando me cruzei, por acaso, com ela, soube: é isto o que agora precisamos, o que agora preciso.

Em Dezembro de 2000, Pärt, numa conversa com Jordi Savall, editada em 2012 na revista Music & Literature, descreve o encontro transformador com o Canto Gregoriano:

No início, no meu período de ‘doze notas’, vivia separado das fontes originais. Então, a viragem que operei foi uma questão de reaprender a fazer todo o caminho outra vez. Sem dúvida, a razão porque tal metamorfose ocorre com algumas pessoas permanecerá para sempre um enigma; o que sei é que quando ouvi o Canto Gregoriano pela primeira vez já deveria ser suficientemente maduro para ser capaz de apreciar tal riqueza musical. Nesse instante senti-me plenamente indigente e rico. Completamente despido. Senti-me como o filho pródigo que regressa à casa de seu pai. Não tinha nada, não tinha alcançado nada.

As metodologias que até então tinha usado não me permitiam dizer o que eu queria dizer através da música. Nesse momento todo o meu trabalho me pareceu como uma tentativa de transportar água com uma peneira. Estava absolutamente convicto: tudo o que tinha feito até então não o voltaria a fazer mais. Por alguns anos tentei compor utilizando a técnica da collage, sobretudo com a música de Bach. Mas tudo isso era mais um qualquer compromisso do que algo que trouxesse na carne. E então, o encontro com o Canto Gregoriano… tinha que voltar ao início. Demorei sete, oito anos, até voltar a sentir um módico de confiança – um período durante o qual ouvi e estudei muita música antiga, evidentemente.

Simplificando, nessa época [circa 1970], já me tinha distanciado de todos os movimentos políticos e das lutas pela liberdade. Acredito que alguém que queira mudar o mundo tem de começar não no que lhe é exterior, mas que o início dessa transformação é no seu interior. E essa é uma conquista que se alcança milímetro a milímetro.

Idealmente seria capaz de compor uma melodia com uma voz infinita, que se prolongasse para sempre. Música que fosse como um discurso, como um fluxo do pensamento. […] Na música, podemos dizer que uma voz ou uma linha melódica é como a alma de um homem. Neste sentido, a polifonia terá mais a ver com a ideia de uma multidão. A riqueza da música de várias vozes é, no entanto, o conjunto da riqueza de cada uma dessas linhas melódicas – como é o caso da polifonia dos grandes mestres do passado.

E por fim, Enzo Restagno manteve uma longa conversa com Pärt em Julho de 2003. Aqui estão as passagens mais pertinentes retiradas do livro Arvo Pärt in Conversation editado em 2012:

Para poder continuar [após uma crise] é preciso atravessar um muro. Para mim, isto sucedeu por uma conjugação de alguns, por vezes acidentais, encontros. Um deles, que em retrospectiva se revelou de importância capital, foi com uma pequena peça do repertório Gregoriano que ouvi quase por acaso durante alguns segundos numa loja de discos. Nela descobri um mundo que desconhecia, um mundo sem harmonia, sem métrica, sem timbre, sem instrumentos, sem nada. Nesse instante tornou-se claro para mim que caminho teria que seguir, e uma longa viagem iniciou-se no meu inconsciente. […] Só mais tarde compreendi que é possível exprimir mais apenas com uma simples linha melódica do que com muitas. Nessa altura, dadas as condições em que me encontrava, era incapaz de escrever uma única linha melódica sem o recurso a números; mas os números do serialismo também já não tinham sentido para mim. Não era o caso com o Canto Gregoriano. As suas linhas tinham alma.

Nessa época [nos anos após o Credo, de 1968] estava convencido de que não poderia prosseguir com os meios composicionais que tinha ao meu dispor. Simplesmente não tinha matéria para continuar, simplesmente deixei de compor. Queria encontrar qualquer coisa vivo e simples e não destrutivo. […] O que eu queria era apenas uma simples linha musical que vivesse e respirasse interiormente, como aquelas dos cantos de outrora, ou como ainda hoje existem na música popular: uma melodia absoluta, uma voz despida que é a fonte de todo o resto. Queria aprender a dar forma a uma melodia, mas não tinha a mínima ideia de como o fazer.

Tudo o que tinha para continuar era um livro de Canto Gregoriano, um Liber Usualis, que tinha recebido de uma igreja de Talin. Quando comecei a cantar e a tocar essas melodias tive a sensação que me estava a ser dada uma transfusão de sangue. Foi um trabalho extenuante porque não se tratava simplesmente de absorver toda aquela informação. Tive de ser capaz de compreender essa música desde as suas raízes: como ganhou existência, o que as pessoas eram quando a cantavam, o tinham sentido ao longo das suas vidas, como compuseram esta música e a transmitiram através dos séculos até se tornar a fonte da nossa própria música. […] Consegui construir no meu interior uma ponte ente o passado e o presente – um passado com alguns séculos – e isto encorajou-me a continuar a explorar. Ao longo desses anos preenchi milhares de páginas com exercícios em que ia escrevendo melodias para uma voz.

Pärt pode ajudar-nos a entender, mais uma vez, com novos ouvidos, o tremendo, inesgotável bem e fertilidade do Canto Gregoriano. Embora apenas uma pequena parte da sua música seja baseada directamente nos motivos do Canto Gregoriano, (como por exemplo o são o Credo da Missa em Si menor de Bach, a Totentanz de Lizt, ou o Requiem de Duruflé), quase todo o seu trabalho – a Passio e o Te Deum vem-nos imediatamente à memória – é permeado pelo sentimento e espírito do Canto Gregoriano.

Partilha com o Canto Gregoriano a fluidez frásica, onde o ritmo musical se sustenta nas exigências da palavra; o carácter modal e subtileza emocional, que resiste à superficialidade e convida à contemplação. Tanto o canto como os tintinnabuli são muito bem descritos pela definição que Platão dá do tempo como «imagem em movimento da eternidade».

Para Pärt, como nos revelam as suas composições e as suas palavras, a música é um mistério elementar ao qual nos devemos aproximar reverente e silenciosamente. Paradoxalmente, a música apenas pode florescer no silêncio, tem origem e ressoa no silêncio, e o ouvinte, tanto quanto o compositor, deve possuir um espírito tranquilo. Ainda que agitado, o seu espírito, deve, num sentido mais profundo, permanecer sereno, ou seja, receptivo à influência das musas, ou da graça. A graça responde pela beleza construída pelo homem; sempre que há beleza no trabalho humano, aí opera a graça. Quer seja a graça sobrenatural ou o dom das capacidades latentes na natureza humana, Deus fala-nos através da Arte nas suas mais elevadas manifestações, tanto quanto a Arte possa ser considerada um ninho para os Evangelhos, uma tradução das tonalidades mais obscuras do mistério nas tonalidades mais brilhantes do sentimento e conhecimento humanos, uma companheira de scientia na obra da pregação de Cristo.



Peter Kwasniewski

[In Catholic Education Resource Center, Trad. jac]