terra devastada


[Jardim Gramacho, Andrew Lenz, 2007]


Abarcamos tudo, mas só pegamos vento.


Três deles, ignorando o que custaria um dia a seu repouso e felicidade o conhecimento das corrupções de cá, e que esse contato geraria sua ruína, que suponho já avançada (pobres deles que se deixaram levar pelo gosto da novidade e deixaram a brandura de seu céu para vir ver o nosso), estiveram em Rouen, quando ali estava o finado rei Carlos IX: o rei falou longamente com eles, foram-lhes mostrados nossos modos, nossa pompa, a forma de uma bela cidade e, depois disso, alguém lhes pediu sua opinião, querendo saber deles o que haviam nisso considerado mais admirável. Eles responderam três coisas.


[Dos Canibais, Michel Montagne, 1580]




O lixo é a parte da nossa história que não queremos no álbum de fotografia.

[Vik Muniz, Pessoal e Transmissível, Tsf, 28.09.2011]





É mais sobre o ego de Vik Muniz e algumas boas intenções - ainda que uma boa intenção, uma só, apagaria o fogo do inferno - (ou algumas boas intenções nascidas da ferida narcísica do autor?), não tanto um filme sobre os dejectos da sociedade.
Jardim Gramacho, o maior aterro sanitário da América Latina, é o território – paisagem – onde Lucy Walker filma Vik Muniz no processo de produção de fotografias de imagens construídas com o lixo catado na lixeira. A proposta de Muniz é a de envolver os catadores na criação dessas imagens, processo que, uma vez finalizado, contemplaria o retorno à comunidade dos catadores do valor com que as fotografias fossem transaccionadas em leilão.
Interessa-me menos a intenção e mais o território e o porquê da escolha do Jardim Gramacho.
Sobre isso o filme é omisso. Apenas umas parcas elaborações do artista sobre a sua vocação e filiação pop – será sempre a conlusão óbvia de qualquer pop, o esgravatar o lixo – sobre a matéria como fim único da arte e do homem, a evidência de que o lixo é a matéria do que rejeitamos ver, cheirar, sentir, no nosso espaço. A ausência, portanto, de qualquer pensamento sobre a paisagem, a sociedade, a cidade, a arte, e a relação destas todas.
Para lá das boas intenções, Wasteland é uma belíssima jogada do marketing, com todos os ingredientes demagógicos – outro fim da pop? – para brincar com o pathos da audiência e levá-la ao preciso ponto a que Vik Muniz pretende: a anestesia e a indiferença ao real. Mas só após este ter (sido) consumido aquela.
April is the cruelest month, diz Eliot, o mês do recomeço do ciclo das estações e do inferno da História, do regresso ao cultivo da terra dura nos campos devastados da Europa pós-I Guerra Mundial. Inexplicavelmente o mesmo título do poema de Eliot e o do filme à volta de Vik Muniz no lixo.


[Wasteland, Lucy Walker, 2010]












E é da produção do lixo que Michel Serres nos desperta para uma reflexão sobre a sociedade ocidental contemporânea. Da sua situação pela acção no território, pelo que torna visível e invisível. A poluição como assinatura.
A poluição – palavra que decorre da poluição nocturna, a ejaculação com que o macho marca o seu território vital – hoje o lixo e a destruição com que, à escala do globo, assinamos a nossa presença e acção.
Como os animais que mijam no território para o delimitarem, nós sujamos o território para o possuirmos. Assim nascem os limites, a arquitectura da casa, a construção das cidades, as nações. À volta dos mortos enterrados e em decomposição fixam-se as cidades dos vivos. Onde jaz um homem morto é onde se faz erguer uma cidade; erguemos uma cidade onde enterramos os nossos mortos. A sujidade como sinal de posse e, em movimento inverso, a expansão do dejecto como alargamento da propriedade.

Da vagina à casa, à cidade, à nação. E a religião.
É esta distinção fundamental, a do Ocidente, a quem foi revelado um Deus que não deixa lugar. O universalismo de um corpo que deixa intacto o útero da mãe à nascença e o túmulo vazio à morte. A abolição do sangue e das secreções como lei da paisagem. Uma cultura fundada no espaço vital sem desejo da propriedade além da que o corpo exige.

A propriedade é um roubo, proclamam os modernos, sem perceberem que a propriedade é uma decorrência do espaço vital. Só nos apropriamos do que necessitamos. A necessidade é a ordem do espaço.
A propriedade é um roubo, proclamam os modernos quando o processo moderno da propriedade alastra e vai excluindo cada vez mais indivíduos.


Serres não escapa ao impasse. Proclama, também ele, um fim da propriedade, já não sob reacção à imoralidade desta, mas como necessidade imperiosa para evitar o apocalipse numa paisagem que afirma global.
Marcas globais, publicidade globais que poluem o espaço de percepção (e poluir a alma não é o propósito da “indústria do marketing”?) – a poluição suave - , ruídos, devastações, catástrofes, provocados por acção humana, que rasgam qualquer fronteira e limite – poluição dura - que destroem a despeito dos mapas e das nações. Sendo um espaço global, de circulação global, uma única comunidade global sujeita à acção de si própria, não necessitará mais de fronteiras ou limites, de propriedade.
Optimista radical, com fé no processo do futuro da hominização do homem, o caminho, (utopia?) de Serres esquece a contingência. E a contingência exige-nos um leito para descanso à noite, um buraco para defecar, um claustro para a intimidade do amor. O espaço onde nos refugiarmos da poluição com que sujamos o próximo, a Terra; espaço reservado onde nos limpemos da poeira dos dias. Pelo menos enquanto a lei não for a do amor. A nós, ao próximo, à Terra.



A lei ainda é a da dureza. E por enquanto, esse espaço global escapa ao império da poluição e do dinheiro – dinheiro, esssa epécie de excremento que desejamos e repulsamos. A propriedade não é um roubo, tanto quanto é a única defesa legal para as remoções que estão em curso para que o império do dinheiro siga a sua marcha.
A marcha que desaloja milhares para a construção de “infra-esturutas”, chamam, para a Copa2014 e as Olimpíadas2016, a mesma marcha com que Vik Muniz canibaliza o catador que leva a Londres ao leilão das suas falhas narcísicas.