hubris


[Rua Frederico Eyer, Rio de Janeiro, 2011]


xi
O Rio resiste à metaforização por uma decisão de essência. A literalidade do seu apelo torna-a quase cidade obscena, mas salva-se porque a hibridez é a sua raison d’être, e legitima-se a presença luxuriante porque outra Lei Natural seria um extermínio. As raízes das árvores irrompem pelos passeios do Leblon, alastrando como a Daphne barroca até aos nossos pés, prontas a enlaçá-los, mãos e braços inimagináveis à consciência existencialmente impressionada, ad nauseam, de um Roquentin, pelo excesso de presença das raízes de um castanheiro. Ou a floresta da Tijuca, floresta urbana, plantada às ordens do império, mas que agora destrepa pelos morros abaixo, enleando-se nas grades que afastam os olhares muito ricos dos muito pobres, atravessando, num salto, as ruas por que micos andarilham, acima das nossas cabeças, em cabos de telefone hibridados com liames. Brotam a humidade e o verdor muito além dos jardins autorizados das universidades, pátios adentro, insolentes com os bustos das eminências, como, logo à entrada da Pontifícia, o do Padre António Vieira. Dizia ele: "Há homens que são como as velas; sacrificam-se, queimando-se para dar luz aos outros." Como o sacrificado turista que cai do bondinho, enquanto fazia a travessia do aqueduto da Lapa, da altura de algumas dezenas de metros. Lá em baixo agora, em estertor, as crianças aparecem e rodeiam-no, como a um estranho mais estranho que os “vira-lata” que aguardam pela sua vez. Então tomam a máquina fotográfica, introduzem suas mãos pequenas nos bolsos do moribundo, livram-nos da carteira, do maço, do isqueiro e das moedas, uma a uma. E vão em seguida. Ele morre mais leve. Esta é a capital do império europeu que se arrojou pelo hemisfério sul.










xii
É condição do híbrido que os seus elementos compitam em equilíbrio instável, nunca se permitindo um a submissão ao outro. A cidade afloresta-se duas vezes, como o dia e a noite, mãe e filho um do outro. De cima abaixo, tomada pelo ímpeto da mata atlântica, como um viço selvagem que, descendo do Alto ao Baixo Gávea, contorna a Lagoa, Jardim Botânico ao lado, até às avenidas ricas, em linha com passeios amplos virgulados por Art Déco, alcançando a larga Praça Antero de Quental, antecâmara da derradeira linha moderna dos hotéis de luxo e da silhueta recortada dos postais turísticos. O vigor derrete-se finalmente no areal contínuo de Ipanema e do Leblon, como gelo em caipirinha. De longe, o menor esforço da vista descobre o morro dos dois irmãos, ou a simetria protuberante de dois seios apontados ao céu, e por detrás, cimeiro, a imensa pedra da gávea, a pique sobre o oceano, plana como um catre, à altura de deus. E, novamente, com vigor idêntico a cidade afloresta-se também de baixo acima, da abundância à gratuitidade, iluminando-se pelas encostas dos morros, Rocinha de um lado, Vidigal do outro, construções empoleiradas, pátio que é telha, telha que é chão, encarrapitados na mesma lógica de domínio e submissão que comanda a floresta tropical, mas sob outros tons, cor de tijolo sobre cores da natureza, como banco de corais empolados pelo tempero solar no declínio dos dias.






Viajantes híbridos, André Barata