a posição do missionário



Admito que seja da usura do nome ou até das lentes cínicas com nos vamos defendendo por aí. Tomar a razão da arquitectura pelo seu próprio desejo. E pelo desejo do arquitecto que deseja a arquitectura para sua individual salvação.
Não existem fontes funcionalistas para a arquitectura, ou desconfiamos delas. Recusámos a ideia estreita do progresso social erguido pelo betão aço vidro. A profecia modernista jaz nos escombros de Pruitt-Igoe. O higienismo e a eficácia e a propagação da luz de uma civilização internacional deixaram de ser a motivação, soçobraram às infinitas latitudes individuais, órfãos de uma Ilustração que hoje se reveste na promessa fascista de uma vida eterna e asséptica – com menos encargos para os Estados e mais dividendos para a indústria da «saúde». Da História já nos lembramos pouco e só o fazemos por um punhado de imagens sinapses na rede. O social é o terminal, num o ecran infinitamente portátil.
E isto tudo são pretextos.
Romantismo maior será o de ainda, hoje, afirmar-se como da arquitectura isto tudo que lhe reconhecemos, pela História e pela Teoria. E agora, depois do séc.XX, quase tudo nos parece perecível, falível, insatisfatório, redundante. Que foram as promessas da História, ou prescrições que a necessidade do século foi destacando a cada tempo. Que foram, sem o sabermos, pretextos que abriram caminho para que hoje se possa afirmar a arquitectura como objecto único da vontade.
E isto tudo são pretextos.
Se tudo são pretextos, tudo é-o na realidade. Um princípio da realidade: trabalhar com a realidade será a única maneira de trabalhar para a realidade, se o desejo é o de a transformar e alargar. E acreditando que a arquitectura é também uma maneira do conhecimento, uma via para a compreensão das coisas, um jeito da representação do real, uma profecia do futuro e uma voz do passado, é ir acreditando que através dela o arquitecto, o homem, um dia a si próprio poderá chegar a compreender-se. E a redenção, já não a colectiva, que a redenção é sempre no murmúrio do coração, sabemos, pela arquitectura, não mais que uma maneira de procurar, de cavar, na liberdade.

O resto não era romantismo. Talvez apenas ingenuidade e uma anacrónica crença – muito moderna – como tendo a arquitectura a missão redentora e a civilização dos povos como fim último.

Há o perigo de cada um deixado à sua loucura. É um risco. Mas é para isso que servem as cidades. Se servirem para alguma coisa, tornar todas as loucuras em acordo.


para o Pedro