Via Crucis do Corpo: a Paixão de Maria

I. Jesus é condenado à morte



II. Jesus carrega a cruz às costas



III. Jesus cai pela primeira vez



IV. Jesus encontra a sua Mãe



V. Simão Cirineu ajuda a Jesus



VI Verónica limpa o rosto de Jesus



VII. Jesus cai pela segunda vez



VIII. Jesus encontra as mulheres de Jerusalém



IX. Jesus cai pela terceira vez



X. Jesus é despojado de suas vestes



XI. Jesus é pregado na cruz



XII. Jesus morre na cruz



XIII. Jesus é descido da cruz



XIV. Jesus é Sepultado


Jesus ressucita dos mortos


Estações da Cruz | Dietrich Brüggemann, Ann Brüggemann | Alemanha / 2014


Não é sem algum embaraço que assistimos a Estações da Cruz. O redutor simplismo com que nos vamos colocando as questões da fé e da experiência dessa fé no concreto da vida é fortemente abalado pela, ela sim, simplicidade cortante deste filme. Por apenas 14 planos fixos, um por cada estação da Via Crucis, acompanhamos a trágica jornada espiritual de Maria.
Proveniente de uma minoritária comunidade que se organiza em volta da Fraternidade Sacerdotal de S.Paulo (ficção a partir da excomungada Fraternidade Sacerdotal S. Pio X) Maria, 14 anos, vive enredada entre as contradições do legalismo com que a família e o padre Weber vivem e lhe transmitem a fé, as pulsões naturais de uma adolesce e a censura, quando não intolerância, de um mundo cada vez mais secularizado, sexualizado e adverso à gramática do religioso.
Na semana que antecede a Confirmação, e no seu percurso de preparação para este Sacramento, Maria dá a sua vida em sacrifício pela cura do pequeno irmão autista. É esta a motivação com que Maria se propõe a um caminho de santidade. E aqui a perplexidade surge-nos, desde logo, pelo contexto rigorista em que Maria cresce.
Em Estações da Cruz a forma é inextricável das questões que levanta. A coincidência formal das 14 estações do caminho da Cruz com os 14 longos planos fixos em que se desenvolve o filme é essencial para a compreensão deste olhar cru sobre os mistérios da fé e da experiência religiosa. A austeridade formal e a secura da câmara relegam à palavra o privilégio na construção das relações que as personagens estabelecem entre si. E é pela palavra que Maria procura, inocentemente, dizer-se e dizer Deus. Sem questionarmos a autenticidade da fé de Maria – por ser o indizível a paradoxal forja da fé de cada mulher e homem - é questionável o rigor implacável com que lhe são transmitidos os fundamentos dessa fé.
Estações da Cruz recusa a provocação fútil ou sequer propõe um juízo na apresentação das personagens que, a nossos olhos, porventura corrompem e distorcem os fundamentos da fé católica. Antes, somos interpelados pelo mistério da fé. E é aqui o enigma do filme: uma fé que pode ser destrutiva e disruptiva se vivida pelo rigor da letra da lei; ou resgate do Homem e da sua humanidade interpelado pelo Deus do amor e misericórdia.
É do ventre da experiência religiosa que nascem as civilizações, apesar da original e trágica hipótese moderna de um mundo sem Deus. Quando o Papa Ratzinger nos diz que “existem tantos caminhos para Deus quantos os seres humanos” sabemos que a experiência religiosa é absolutamente diversa em cada um de nós. Radicalmente diferente. Na certeza de que a busca de Deus é provavelmente a mais radical experiência humana. E aquela que, desde os alvores da Humanidade, dá forma às civilizações. A questão central em Estações da Cruz é o modo como a teia legalista sufoca a fé de Maria e, por extensão, a própria Maria. Por Paulo somos advertidos de que a «letra mata» - e se há alguém vive com radicalidade o Espírito d'O Ressuscitado é o Apóstolo – e é a esta luz que a Cruz, aqui, vai perdendo o seu sentido, amarrada a uma rede asfixiante que destrói aquilo que, pela fé, deverá ser radicalmente livre: o coração de cada mulher, o coração de cada homem.

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Cristo suportava o Mal, o Demónio, as tentações e toda a sorte de contradições e fragilidades humanas. Mas Cristo não suportava os Fariseus na sua visão estrita da Lei. Foi contra o Fariseus que o Filho do Homem ergueu a espada e recusou a paz. Foi contra a detestável visão legalista da Lei, que aprisiona e encerra os homens numa infernal e hipócrita burocracia da Alma, que Jesus anunciou uma só Lei. A lei do Amor.

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Ao contrário do que nos diz Dietrich Bruggemann, a Fé é mesmo para «levar a sério». Por isso tem necessariamente ser suportada pela Razão. Só uma Fé esclarecida pode, depois, iluminar a Razão.



Adenda: publicado no site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura